Um escritor tem suas obsessões. Temas, territórios que retornam — e sempre se reinventam.
Quando há alguns meses conversei com o Luiz Ruffato e perguntei sobre o seu novo livro que em breve seria lançado, ele disse que “era aquela mesma história”: um sujeito que volta para Cataguases e revê o que restou da família, descobre as mudanças nas pessoas, alguém que enriqueceu, o outro que nunca se deu bem na vida. Mas é claro que eu sabia que o trampolim apenas anunciava um salto imprevisível. Agora, tendo lido O verão tardio, ainda sinto que preciso firmar meus pés de volta na rotina. Pareço continuar neste impulso ficcional, que pode ser tão doloroso quanto certas realidades, mas de algum modo se torna até mais incisivo.
Não há nada mais difícil do que contar uma história aparentemente simples. Rechear um enredo com ações mirabolantes ou usar o recurso do fantástico somente para arrancar assombro é coisa que só convence os ingênuos, as mentes imaturas que se distraem com pirotecnias. Leitores experientes exigem outra coisa — e estratégias sutis, como o trançar de vozes narrativas, a mudança no ritmo das palavras para distinguir um discurso, o fluxo dos parágrafos e a cadência da frase criando os efeitos de tempo largo (com a dramaticidade suspensa), isso é para os raros, como Luiz Ruffato.
Neste romance, as tragédias domésticas pontuam a solidão de todos os personagens. Stella, a mãe do protagonista, Marilda, a primeira namorada, o professor Mendonça e tantos outros figurantes, que atravessam as páginas como transeuntes nesta história, têm sua pincelada de amargura. Muitos são fugazes aparições no feitio dos desconhecidos que passam por nós na rua, num dia pouco especial — mas qualquer um deles carrega a potência de um drama, um segredo ou desejo a ponto de explodir, um passado (quase sempre, o passado!) que é uma bomba tiquetaqueando na memória.
Pode-se dizer, como num dos trechos do livro, que o grande esforço de Oséias é para se saber real, “eu, que com frequência, zanzando anônimo por entre a multidão, acreditava-me invisível. Ali, naquela espécie de purgatório, reconhecia criaturas semelhantes a mim, assombradas, mas decididas, inseguras mas rijas, e isso confirmava, de algum modo, que, embora pouco mais que nada, eu existia”.
Essa existência miúda é alfinetada por desgraças: a penúria, a infidelidade de tantos casais sustentados por mera aparência, o sem-sentido dessa vivência equiparada de cães e crianças avulsos pelo mundo. Há muitos cheiros pelo livro, muitos recintos infectos, banheiros, cozinhas, ruas, rios — uma poluição que se instala na alma também das pessoas, todas condenadas a repetir destinos miseráveis. Mesmo os mais ricos — alheados da gente pobre ou marginal — vivem nessa borda do medo (da velhice, da morte, da tristeza). Cada um continua “ensimesmado em seus próprios desacertos”.
Nesse roteiro de êxodo e retorno, o protagonista Oséias persegue “nomes que latejam rostos, como anúncios luminosos de motéis ordinários na beira da estrada”. É uma espécie de ritual que ele se autoimpõe: precisa recuperar os fragmentos, a história familiar nestes mosaicos de memória. “Sou um fantasma assustado esbarrando em corpos que se movem alvoroçados pelos territórios do passado” — ele admite, no princípio do livro. Mas a importância periférica destas pessoas vai se embotando à medida que a dor repisa os temas, revolve as lembranças. “Seu hálito azedo embaça meu rosto”, ele comenta, a respeito de uma dessas figuras antigas — e, numa progressão de declínio, o seu rosto vai evitando os espelhos, tornando-se cada vez menos reconhecível.
“Meu deus, vou morrer e nunca mais… Vão enterrar não meu corpo, o que é um corpo? mas tudo que fui, todas as lembranças, todas as pessoas que habitam em mim e que posso reviver apenas fechando os olhos.” A ânsia por um tipo de eternidade realiza-se não por mera propagação genética (há tantos filhos abandonados, brigados ou desaparecidos, neste livro!), mas por uma responsabilidade associada ao pensamento. Se deixamos de pensar, morremos — e matamos os que levamos dentro de nós.
Aos poucos, Oséias confessa: “Me tornei rocha, me tornei aço, não sinto mais nada”. Essa força — ou embotamento — sustenta a narrativa em primeira pessoa, com uma objetividade que é o contraponto essencial para uma carga dramática tão potente. Mas, dentro de uma complexidade que só as histórias aparentemente simples podem conter, essa sua fortaleza é paradoxalmente libertação e ruína. Ou talvez seja, de modo sintético, desprendimento. Porque não nos resta alternativa, ao final: vamos nos desprender do que quer que seja. E a desistência pode ser feita de modo discreto, quase irrelevante (como tantas vidas que surgem e desaparecem), mas ainda assim ser um tributo aos dignos.