Ter ou não ter

Façamos como Lina Meruane: vamos nos voltar para a figura da mulher
Ilustração: Vitor Vanes
31/01/2019

Conheci a literatura de Lina Meruane em 2015, à época da publicação do meu Turismo para cegos. Com poucos meses de diferença, a Companhia das Letras publicava o meu romance de estreia, enquanto a extinta Cosac Naify trazia ao público brasileiro Sangue no olho, da autora chilena. Essa confluência de tempos e temas nos aproximou invariavelmente, e quando li o romance de Lina Meruane notei que a afinidade não parava aí. Perspectivas sobre o mundo, experiências profissionais, alguns tratos de linguagem: Lina e eu pertencemos à mesma família literária, afirmo — e com isso aponto as semelhanças mas não estabeleço identidade absoluta (quem tem família sabe o que estou dizendo).

Foi, portanto, com uma expectativa óbvia que comprei o recente lançamento dessa irmã de letras. Contra os filhos, desde o título, propõe-se a questionar o império dos rebentos — circunstância que ameaça (e muitas vezes extingue) a liberdade na vida de uma mulher. A discussão sobre maternidade envolve, por tabela, a presença de uma paternidade e de alternativos papéis sociais que Lina Meruane debate, mas não enfatiza, justamente porque seu foco é a figura da mulher — que continua a mais cobrada e julgada neste assunto. Existem pais responsáveis e amorosos: alguns até se ocupam da prole sozinhos, sim. Mas admitam que isso é exceção. E, admitido o fato, façamos como a autora chilena: vamos nos voltar para a figura da mulher.

Ter ou não filhos, para alguém do sexo feminino, costuma ainda ser uma opção camuflada. As perguntas que se dirigem a uma jovem — ou mesmo a uma mulher mais madura — especulam sobre quando terá filhos e quantos pretende. Como se a ideia da abstenção fosse raríssima — anormal. E como se a decisão não envolvesse um processo complexo e irreversível. Na verdade, disfarçar a maternidade sob os rótulos de beleza, simplicidade, harmonia ou santidade são velhos artifícios sociais para a manutenção do sistema de mão de obra econômica. Dos corpos femininos se exige “que façam sua gestão privada”, muitas vezes sem assistência do Estado, embora em prol deste.

Na esteira das leituras fundamentais em torno dessa questão, encontra-se Silvia Federici. No seu O calibã e a bruxa, descobrimos a força com que políticas pró-natalistas sustentaram o desenvolvimento capitalista na Europa, inclusive com a existência de leis que penalizavam o celibato. O Estado invade a esfera familiar, para supervisionar a vida sexual e a procriação — e adivinha sobre qual dos cônjuges recai o maior grau de fiscalização e exigência?

A caça às bruxas foi largamente motivada pelos chamados “crimes reprodutivos”: as mulheres não podiam ter o controle da vida; descobrir estratégias anticonceptivas era feitiçaria… assim como reunir-se com outras mulheres foi logo associado a práticas malignas, invocação de demônios. Não espanta que o fenômeno da sororidade continue a enfrentar tanta resistência. As mulheres foram ensinadas, durante séculos, a temer e odiar umas às outras. Sua celebrada “passividade” ou “recato” nasceu como um traço imposto pela sociedade — não tem correspondência na natureza, onde as fêmeas sempre foram ativas e ferozes.

Essas opiniões invasivas, essas cobranças milenares impostas às mulheres variam em dramaticidade dependendo da sociedade e do contexto político — mas não há momento em que não sejam grotescas, pelo desrespeito que demonstram à individualidade. A sugestão de que uma mulher sem filhos é incompleta expõe um preconceito claro: considera que um filho seria “o modo de aperfeiçoar esse ser informe e deficitário”. Por que os homens, ao contrário, seriam criaturas completas antes, e independentemente, de serem pais? Por que as meninas recebem bonecas para desde cedo aprenderem a se ocupar com o outro (e, mais tarde, estarem dispostas ao sacrifício ou anulação em benefício alheio), enquanto os meninos ganham carrinhos, com os quais são estimulados a conquistar um percurso e avançar (de forma solitária ou não, pouco importa)? Essas reflexões, já bastante antigas, continuam sendo necessárias, porque — para lembrar a muito conhecida Simone de Beauvoir — “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.

Élisabeth Badinter, n’O mito do amor materno, explica como o apagamento da figura da mulher em prol de uma figura de mãe construiu-se a partir do século 18, na França: “A nova mãe é essa mulher que conhecemos bem, que investe todos os seus desejos de poder na pessoa de seus filhos. Por eles, esquecerá de contar seu tempo e não poupará nenhum esforço, pois os sente como partes integrantes de si mesma”.

A culpa, lançada às mulheres que não se encaixavam nesse modelo, cresceu a partir de um discurso moralista, religioso ou médico: “Assim fazem Rousseau e Freud, que elaboraram ambos uma imagem da mulher singularmente semelhante, com 150 anos a separá-los: sublinham o senso de dedicação e sacrifício que caracterizam, segundo eles, a mulher ‘normal’. Fechadas nesse esquema por vozes tão autorizadas, como podiam as mulheres escapar ao que se convencionara chamar de sua ‘natureza’? Ou tentavam imitar o melhor possível o modelo imposto, reforçando com isso sua autoridade, ou tentavam distanciar-se dele, e tinham de pagar caro. Acusada de egoísmo, de maldade, e até de desequilíbrio, àquela que desafiava a ideologia dominante só restava assumir, mais ou menos bem, sua ‘anormalidade’. Ora, a anormalidade, como toda diferença, é difícil de se viver. As mulheres submeteram-se, portanto, silenciosamente, algumas tranquilas, outras frustradas e infelizes”.

“Hoje já não estamos mais nesta situação”, assinala Badinter, escrevendo na década de 1980. Entretanto, lembremos que em 2016 a pesquisa da socióloga israelense Orna Donath, que resultou no livro Regretting motherhood, provocou uma polêmica global, levantando acusações que poderiam ter saído de cartilhas ancestrais.

Atualmente existe um perigo conservador até em algumas tendências feministas. Conforme ressalta Lina Meruane, o “feminismo essencialista” se transforma num tiro no pé, na medida em que celebra a mulher com suas especificidades, pretendendo que a sua natureza deva obedecer aos ciclos e condições físicas mais primitivas, sem o auxílio de qualquer conforto que a tecnologia possa proporcionar. Recusando o parto em hospitais, o leite em pó, as vacinas e, por extensão, tudo o que possa ser utilizado em substituição a um “processo natural”, essas mães ecológicas acabam por aceitar as exigências mais excessivas, chegando ao ponto de atuarem como enfermeiras e professoras dos próprios filhos, completamente absorvidas neste acúmulo de papéis em torno da família — e sem nenhuma vida fora dela.

Qualquer semelhança com um eterno retorno histórico — detalhado também por Federici, Badinter, Beauvoir — não será mera coincidência. Temos de lembrar repetidamente essas lições do passado, para ficarmos alertas.

Em todos estes livros (e em diversos outros que por razões de espaço não citei), para além da abordagem do conteúdo, ressalto o gesto primeiro de consultá-los, buscando referências. Esse é o primeiro passo, essencial, para a liberdade: permitir-se o pensamento. Se alguém rejeita tal possibilidade sob o impacto, digamos, de um título que lhe revira tabus, o caminho sequer começa. Contra os filhos é um nome que cria, sim, repulsa: mas vencê-la já é sinal de maturidade reflexiva. Se dedicamos um olhar racional aos assuntos, conseguimos domesticá-los — não somos mais seus reféns. A partir daí, surge toda uma prática de autonomia e autocuidado, para fazermos nossas escolhas com consciência.

Contra os filhos
Lina Meruane
Trad.: Paloma Vidal
Todavia
176 págs.
Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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