Sobre o fim

Em absoluta solidão, fui aberta por uma faca, esmagada e estilhaçada por dentro
Ilustração: Valdir Heitkoeter
27/04/2017

(Em dezembro de 2012, o mundo estava prestes a acabar, de acordo com uma suposta profecia maia.)

“Olha, para falar a verdade, não estou nem aí”, estive para dizer — e disse até, a outras pessoas mais próximas que me chegaram antes, melancólicas ou desesperadas, comentando previsões. Tudo apontava à mesma trilha, ou seja, trilha nenhuma, fim do mundo, nada de futuro daqui a uma semana, entendeu? — tentava me explicar Mauro, de Bíblia numa das mãos e jornal na outra. Eu coava o café de costas para ele, mantendo-me calada para não ironizar seus argumentos tão ecléticos. De um lado, o jornal trazia tarôs, cabalas, aeromantes que viam a sorte nas nuvens e no vento, adivinhos os mais variados, que encomendavam pérolas ou ovos para ler mensagens em sua superfície, e lembro que havia até um respeitado arqueólogo que usava um martelo para fazer previsão através de fósseis. Na Bíblia, o veredito era idêntico, pelos trechos do apocalipse que Mauro agora recitava: trombetas, sinais e taças anunciando a morte próxima.

“Com açúcar ou adoçante?”, perguntei, e creio que por um instante Mauro pensou que eu estava ridicularizando o final que nos ameaçava. Olhou-me sério, quase raivoso, mas então percebeu a xícara que eu lhe estendia e sentou-se no banco da cozinha: com açúcar; não faz diferença. “Entretanto, continuamos a tomar um bom café”, comentei, depois do primeiro gole. Mauro desanimou um pouco, viu que o esforço para me converter não estava adiantando. Afinal, o que mudava, se eu acreditava ou não na catástrofe? Ela não deixaria de acontecer: havia muitas setas apontando para o mesmo texto, embora com variações do modus operandi: alguns falavam em línguas de fogo, terremotos ou raios fulminantes. Outros garantiam uma simples explosão súbita, assim como se a Terra virasse um balão que de repente espoca — e eu imaginava cada partícula de montanha lançada no espaço, a torre Eiffel como um alfinete a voar, catedrais se desfazendo feito areia, mares respigando no cosmo, talvez muito lentamente (diziam os físicos), e nós, seres mínimos, arremessados em dissolução, transformados em vácuo ou som que reverbera e ninguém escuta. A tese mais aceita, porém, era a da grande onda a varrer continentes — o que significava que haveria locais preservados. Afinal, o fim não parecia ser de tudo a um só tempo; recônditos desertos ficariam intactos, e inclusive já deviam estar sendo ocupados pelos magnatas. Os excessivamente ricos tomam suas providências: políticos constroem bunkers refrigerados no Saara, ou então se mandam para algum tipo de satélite onde planejam viver flutuando, com as famílias escolhidas para repovoar o mundo em algumas décadas. Pensei naquelas arcas de noé siderais e fiquei sinceramente deprimida pela geração seguinte. Ainda bem que eu não estaria presente para ver aquela história ou conviver com seus personagens. No momento, era o bastante suportar Mauro com sua ladainha de urgência, como se a alma fosse a única coisa a salvar, uma espécie de HD com as memórias da fé e da redenção. Eu não acreditava que ele havia comparado o espírito com um computador, mas ele continuava no raciocínio: se eu acessasse aquele meio, estaria garantida para sempre, por toda a eternidade teria paz.

Mas a paz virá de qualquer jeito, com o nada — argumentei, folheando o jornal, que citava antigas cosmogonias, ciclos de criação e destruição conforme os hindus. “Dias e noites de Brahma”, li em voz alta, e Mauro novamente pegou a Bíblia para catar versículos. Eu continuei passando a vista sobre as páginas, enquanto ele testava o efeito nulo de uns trechos apocalípticos sobre mim. Eu estava mais interessada no divino carma da Índia, no véu de Ísis ou no eclipse celta: um emaranhado de informações que num relance fisguei, antes de tomar o último gole de café. Sentia-me exausta com tantas palavras; mesmo escritas, elas criavam um barulho incômodo, o retorno de um pensamento obsessivo, círculos de tédio. Talvez Mauro finalmente me compreendesse, pois se calou e disse que estava na hora de ir. Despediu-se com ar de fatalismo, segurando meus dedos à maneira de um velho mestre. Mas, quando fechei a porta, achei estranho que ele não tivesse também lançado um olhar de despedida ao meu apartamento. Eu própria já havia contemplado muitos locais da cidade com aquele desprendimento saudoso de quem sabe que não vai retornar. Era o olhar de dor e conformismo que eu aplicara um mês antes sobre o homem que parecia ser o amor da minha vida e, no entanto, me traíra de um jeito tão vergonhoso. Eu pensava nele agora, nos planos que tínhamos feito, brincando, de passar o fim do mundo juntos e abraçados, na cama. Ele dissera que ia gostar de morrer num desastre coletivo; seria apenas uma vítima dentre tantas e não haveria luto, sofrimento, alguém que ficasse chorando o abandono.

Ele se enganara por questão de dias. Não tivesse eu descoberto as mensagens e mentiras que camuflavam sua dupla existência, estaríamos ainda sonhando em nos transformar na reprise do lendário casal de Pompeia, encoberto por cinza tóxica durante um sono de prazer — ou pelo menos eu faria isso; sozinha, estaria fantasiando que seríamos pulverizados em simultâneo, reduzidos a sombras ou suspiros. Mas o tempo escorregou nos seus propósitos, e as coisas se anteciparam: individualmente, em absoluta solidão, fui aberta por uma faca, esmagada e estilhaçada por dentro. Que me importava uma segunda morte, midiática ou sensacionalista? Mauro havia esquecido a Bíblia sobre a mesa da cozinha, mas não senti qualquer impulso de pegá-la. O jornal também ficou ali, desordenado, com as folhas balançando como asas moles sob o peso das xícaras. Eu me aproximei da janela para observar as silhuetas miúdas que passavam na rua em frente, próxima ao parque. Na extremidade do chafariz, apesar da distância, sei que uma gárgula me sorri. Ela parece uma pedra cantando versos de dilúvio; diz que falta somente uma semana para a ausência de futuro, e — quer saber? — eu mal posso esperar pelo fim de tudo.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho