Sobre fotos e farsas

Na série “Desconstruindo Osama”, o trabalho de Joan Fontcuberta seduz pela inteligência e humor
Ilustração: Reno
27/02/2019

A legenda era tão surpreendente quanto a imagem que eu tinha sob os olhos: “Manbaa Mokfhi diverte os seus companheiros, agindo como um equilibrista em sua mula. O instantâneo capta precisamente a pirueta chamada ‘estrela do céu’, muito apreciada entre os mujahideen, 2002”. Com a série Desconstruindo Osama, que conheci no fotofestival Solar, o trabalho de Joan Fontcuberta me seduziu imensamente, pela inteligência e humor.

A sequência de imagens em que ele aparece barbado e vestido à maneira de um muçulmano tem outros momentos hilários. O seu personagem é o doutor Fasqiyta Ul-Junat, um dirigente da Al-Qaeda, que supostos repórteres de um fictício jornal independente, Al-Zur, revelaram na verdade ser Manbaa Mokfhi, um ator e músico que havia trabalhado em novelas televisivas no mundo árabe. Após o furo jornalístico, o comediante reconheceu ter sido contratado para interpretar o papel de terrorista-vilão em operações orquestradas no Afeganistão e Iraque, conforme detalha um recente livro de Fontcuberta: “Depois dos atentados de 11 de setembro, a inteligência estadunidense e os aliados de sua órbita de interesse precisavam encontrar rapidamente um culpado que fizesse esquecer a cadeia de aparentes negligências em que haviam incorrido. Segundo alguns grupos antibelicistas, foi assim que a Oficina de Influência Estratégica encarregada da difusão de informações falsas inventou o personagem de Osama Bin Laden e o grupo de seus seguidores mais próximos”.

Do livro, consta também uma entrevista/conversa entre os pretensos fotojornalistas que fizeram “a descoberta inverossímil” em torno de Ul-Junat: sob os nomes de Mohammed Bem Kalish Ezab e Omar Bem Salaad, estes personagens debatem sobre os paradoxos de sua profissão, dentro de uma tradição religiosa que proíbe imagens — e suas reflexões atingem um valor universal. Com a mão sobre o peito, pensemos no Brasil ao ler este trecho, por exemplo: “Tal como ocorre com a Bíblia, a doutrina islâmica pode ser interpretada de muitas maneiras, tanto para promover a paz e a tolerância como para promover a guerra e o fanatismo. Os culpados desse desencontro interessado são os ideólogos que distorcem a religião — qualquer religião — para colocá-la a serviço de seus programas políticos e seus interesses econômicos”.

A ideia de que o 11 de setembro nada mais foi do que um autoatentado para promover conveniências bélicas (e financeiras — óbvio) vem sendo debatida por diversas vertentes. Mas, para além de teorias da conspiração, o que a proposta de Fontcuberta faz é criticar a fotografia como evidência do real. Uma foto não é um fato — cada vez menos, aliás, neste mundo em que a manipulação digital virou uma tendência frenética.

Fontcuberta cria uma farsa — pelo tom jocoso e pela dimensão teatral, inclusive. Sua obra provoca o tipo de estranhamento que leva ao riso, sim, mas logo o ultrapassa para chegar a um questionamento complexo. A simplicidade está no recurso estético: o uso de colagens em fotografia, deslocando elementos de vários lugares e promovendo o seu inusitado encontro numa cena, é tradicional. Os surrealistas, principalmente, souberam explorá-lo muito bem. Mas Fontcuberta, à diferença dos vanguardistas do início do século 20, que se empenhavam na geração de uma estranheza onírica, interessa-se pelo efeito de realidade que expõe nossos preconceitos culturais, nossos temores mais arraigados. A visão de um sujeito com longa barba desgrenhada e turbante recebe, imediatamente, um rótulo; se ele estiver num cenário de deserto, segurando uma arma, então… é inevitável pensar em terrorismo, ameaça, fundamentalismo etc.

Além de todos estes aspectos de reflexão política, social e cultural, a obra de Fontcuberta — ao colocar em dúvida o conceito de “verdade” que ainda persegue a imagem fotográfica — joga mais um peso na sua definitiva classificação como arte. Embora a fotografia tenha nascido com forte valor utilitário e documental, as estratégias particulares já presentes em seus primeiros autores (Robert Cornelius e Hippolyte Bayard, dentre outros) indicavam uma prática, em certa medida, ficcional.

Fontcuberta, também enquanto professor e pesquisador, aponta para suas realizações artísticas na consciência deste esgarçamento de fronteiras. Ler seus livros, como La furia de las imágenes — notas sobre la postfotografía, acrescenta profundidade à fruição do seu trabalho. Afinal, este não é apenas um artista de êxito. É um artista que pensa sobre a linguagem que manipula e — a julgar pela sua palestra A decadência da mentira, realizada no citado fotofestival Solar, de Fortaleza — é um perfeccionista, que organiza com didatismo as ponderações que apresenta. No meio de tantos que se vangloriam de serem criadores meramente pulsantes, orgulhosos de um improviso desleixado na hora de falar, ouvir Fontcuberta abre um oásis. Não à toa eu sempre prefiro os artistas intelectuais: inspiração, surto de loucura ou sorte podem até gerar alguns resultados na arte. Mas faz uma grande diferença, quando alguém assume o prazer — e a necessidade — do estudo nesta área.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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