Já faz um tempo que me intriga a percepção do quanto sexo e humor costumam ser tratados como temas proibidos — se não interditados completamente, pelo menos vistos sob desconfiança. “Muito riso, pouco siso” é uma antiga frase castradora, tanto quanto outras, que impedem a menção ao erotismo, como se ele estivesse associado à vida não-civilizada.
Seja porque os excluídos se irmanam, seja porque de fato existe uma ligação essencial entre os dois assuntos, não é raro que se veja num texto — ou num comportamento — a referência ao sexo e ao humor em doses equivalentes.
Uma velha estratégia repressora costuma desvalorizar o que pretende suprimir, estabelecer hierarquias nas quais a atitude mais obediente a um determinado acordo social é considerada nobre. As ações desviantes, em contrapartida, são acusadas de erro, vistas como prejudiciais, de má qualidade. O riso sempre foi considerado perigoso, mesmo em épocas (ou lugares) de maior permissividade erótica — porque as lideranças se sentem ameaçadas. Se a pessoa que está no poder não for respeitada, muitas vezes temida, se gargalhadas puderem desmascarar sua óbvia humanidade e com isso levá-la ao desprestígio, toda uma ordem estabelecida deve sumir.
É por isso que vemos, desde a época clássica, a comédia sendo considerada o produto menor da teatralidade grega. Se então ritos de fertilidade garantiam a exaltação do sexo — associado ao festivo Baco, com seu toque de sátira (vale lembrar a silhueta dos sátiros, figuras híbridas e extremamente devassas) — durante a Idade Média qualquer riso ou aspecto libidinoso virou tabu para a humanidade. Eis O nome da rosa, ficção de Umberto Eco (mas ficção de um pesquisador!), que aventa a hipótese de como um livro perdido sobre a Comédia era o máximo da interdição para um clero medieval, que podia seguir com suas práticas sensuais (e talvez a culpa e as necessidades de esconderijo inclusive as temperassem), mas recusava terminantemente o prazer da brincadeira. Essa possibilidade é óbvia, se pensarmos que qualquer postura autoritária opera pela inibição, pelo constrangimento fiscalizador (dos subalternos, sobretudo): difícil imaginar uma situação obrigatória através do riso.
Com o avançar dos séculos, as relações libidinais, tanto quanto as humorísticas, vão se mesclando num tipo de tentação carnal que jamais chega a se extinguir numa sociedade. Às vezes o relato de como determinadas pessoas sucumbiram à luxúria já serve como situação engraçada. Vejamos, por exemplo, um trecho de Roger Chartier, no volume três da História da vida privada:
Em 13 de janeiro de 1668, [Samuel] Pepys se detém em seu livreiro: “Vi um livro francês que pretendia mandar traduzir para minha esposa, L’escholle des filles [Escola das moças, atribuído a Michel Millot e Jean l’Ange]; contudo, depois de dar uma espiada, constatei que era a obra mais licenciosa, mais impudica que existe, ainda que pior que La putana errante, de Aretino. Assim, tive vergonha de lê-lo e fui para casa”. Mas parece que a vergonha não perdura, pois em 8 de fevereiro Pepys volta ao livreiro: “Fiquei ali uma hora e comprei esse livro torpe, malicioso, L’escholle des filles. Escolhi um exemplar de encadernação bem comum, decidido a queimá-lo tão logo o leia, para que não faça parte da lista de meus livros nem possa desonrar minha biblioteca se vierem a encontrá-lo ali”. No dia seguinte, Pepys está impaciente para ler essa obra promissora: “Hoje de manhã no gabinete para trabalhar e também para ler um pouco L’escholle des filles. É uma obra muito licenciosa, porém não é errado um homem sério folheá-la a fim de aprender a conhecer a infâmia do mundo”.
O desfecho desse processo de leitura pode-se imaginar: antes da queima do livro, a volúpia inevitável.
Recordo também A ninfomania, publicado no século 18. Embora atribuída a médico, D. T. Bienville, a obra não escapa de subterfúgios moralistas, que acabam por se converter em passagens hilárias — pelo menos para um(a) leitor(a) da contemporaneidade…
Mestra na mesclagem do cômico ao libertino, é Hilda Hilst, e aqui ressalto especialmente a peça teatral dentro do livro Contos d’escárnio. O tom erudito com que a autora maneja a licenciosidade é perfeito para gerar uma paradoxal solenidade que se quebra com os apelos mais naturais, por assim dizer. A linguagem também nos remete a esse mesmo século fescenino, que citamos antes — época do marquês de Sade e dos clubes amorosos que fervilhavam na alta sociedade francesa.
Mas essa tendência graciosa não é absoluta na literatura erótica. A história de O., por exemplo, não faz de modo algum rir. Pauline Réage (pseudônimo da escritora Anne Cécile Desclos, também conhecida como Dominique Aury) conduziu um enredo de submissão e dor, com sua protagonista sendo muito mais alguém que sofre do que se diverte. O próprio Marquês de Sade, cem anos antes, comportou-se literariamente dessa maneira; o termo sadismo já diz tudo, e talvez Donatien Alphonse François de Sade tenha sido o maior responsável por colocar a mulher numa posição de vítima, em arte.
Até hoje o que mais encontramos são filmes, livros, gibis e outras mídias que exploram a violência, inclusive a sexual, em torno da figura feminina. A quem interessa atualmente esse vínculo entre sexo e angústia — eis o que me pergunto. Entre carnavalizações de Bakhtin e perversões ao estilo de Bataille, continuo a buscar uma arte que saiba trabalhar com o prazer sem punibilidade.
O mito da beleza, de Naomi Wolf, ajuda a esclarecer um pouco desse mecanismo controlador:
O estilo sexual feminino dos anos sessenta foi abandonado na cultura popular porque o fato de o sexo para as mulheres poder ser daquela forma — alegre, sensual, brincalhão, sem violência ou vergonha, sem medo das consequências — destruiria completamente as instituições que já estavam por demais abaladas desde que as mulheres haviam alterado apenas seus papéis públicos. Na década em que as mulheres passaram a encarar a feminilidade de forma política, a cultura popular redefiniu o sexo terno e íntimo como algo entediante.
Neste livro, a pesquisa da autora também evidencia como diversas propagandas associam sexo a violência, “normalizando” situações de estupro. A situação exibida pelos artigos culturais não é muito diferente. E, por mais que aleguemos que essas tendências das décadas de 1970 a 90 já foram superadas, ainda podemos aplicar pesquisas similares, que vão nos mostrar como produtos comerciais — e, por extensão, comportamentos — associam dor a prazer físico. O sexo facilmente é confundido com uma “situação extrema”, daí sua identificação ao perigo e à morte. Entretanto, se quisermos, podemos encontrar outro vínculo para o êxtase, para a descarga de endorfina que um orgasmo traz… Esse vínculo é a gargalhada.
O prazer descontrolado do riso equivale à explosão de sentidos no clímax sexual — e o relaxamento, a descontração subsequente vem de modo idêntico. Entretanto, como existem muitos tipos de humor (confiram Henri Bergson), é claro que à primeira vista não pensamos em associar galhofa, zombaria ou sarcasmo a uma situação lasciva. Muito pelo contrário, esses elementos parecem díspares, com o riso funcionando de modo inibidor, um balde d’água no fogo apaixonado. Entretanto outros tipos de brincadeira, explorações íntimas risonhas, trocadilhos e mesmo curtas e divertidas teatralizações fazem parte dos melhores enlaces carnais. É a esse tipo de humor que me refiro, como o melhor acompanhante do sexo. Eu sinceramente acredito numa redenção do corpo pela alegria, embora essa conquista libertária seja o contrário do que o nosso sistema deseja. Afinal, é muito mais fácil vender milagres para quem ainda não descobriu que o bem-estar é simples — e grátis.