No início de 2020, Bia Perlingeiro me encomendou um texto a respeito da exposição de Portinari, em cartaz na galeria Multiarte. Eu fui lá várias vezes, em parte porque devia me inspirar para o trabalho, coletar dados, etc. Mas também voltava à galeria pelo prazer da conversa com uma pessoa que, assim como eu, interessava-se pelo fenômeno que faz as artes se cruzarem, superando qualquer limite.
“Pinturas. Ou o colapso do tempo em imagens” — dizia Paul Auster em algum lugar. Essa frase retorna quando penso que, poucos meses depois, Bia Perlingeiro morreu de maneira inesperada, vitimada por Covid-19. Hoje, lembrar Portinari e republicar o texto virou minha forma de resgate — de uma época nem tão distante, mas muito mais inocente. Obrigada, Bia.
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A mim sempre emociona ver nascerem as personagens. Flagrar os bastidores do processo artístico — encontrando as fases iniciais de um projeto, com suas hesitações, experiências provisórias, testes — costuma ser uma lição de humildade e talento. Ninguém chega ao seu melhor sem passar por exercícios — e, ao mesmo tempo, quando o criador tem verdadeira perícia, um rascunho de sua obra já traz a marca do gênio. É um privilégio ter acesso a manuscritos, esboços, notas que mostram o trampolim de uma ideia, o lampejo — seguido por alguns recuos, ajustes… até que, de repente, o artista achou o ponto profundo, o caminho dentro do qual seguirá, firme e feliz.
A exposição sobre o universo gráfico de Portinari, em cartaz na galeria Multiarte, de Fortaleza, abre ao público a chance de viver esta experiência. Mas não somente adentramos a intimidade criativa do pintor: pelos seus desenhos, percebemos a vasta multiplicidade técnica que ele dominava.
Alguém que percorresse as seções desta mostra sem atentar para qualquer notícia, digamos, um visitante (nesta hipótese que agora invento) distraído a ponto de sequer saber que o mesmo autor — Candido Portinari — unifica todas as obras, essa pessoa facilmente poderia sair com a sensação de ter visto uma coleção de vários artistas. Porque, no fundo, são muitas as fontes que Portinari aciona, na complexidade de seu(s) estilo(s). A sua poética é híbrida, plural — conforme o tema, a fase, a matéria plástica.
Há cenas de ação agrícola, ciclos do trabalho — e os famosos retirantes, os despejados da terra e da sociedade. Os estudos para quadros mostram o treino (somos convidados a presenciar um ensaio antes do espetáculo), o artista manipulando seus temas preferidos. Figuras em reza, crianças desfalecidas: muitos corpos disformes que se apresentam quase como fantasmas, máscaras de dor. Esse é o Portinari mais conhecido — e que prazer acompanhar o palimpsesto de seu processo, o surgimento de suas criaturas pelo traço!
Eu me detenho diante dessas mulheres que seguram crianças mortas: levam os corpinhos rijos logo abaixo dos seios — os filhos são a trava a lhes barrar o gesto, um corpo que elas não oferecem nem agarram, apenas sustentam, exatamente ali, horizontalmente sob o peito. Quando eles forem tirados delas, certamente o seu movimento será o de levantar as mãos vazias para o alto. Desespero ou prece?
Há uma partitura em Portinari.
Mas há ritmos inesperados, muitos, nesta exposição. E o novo chega ao máximo impacto, pela mudança estilística.
Na série Israel, encontramos um desenhista viajante, voltado sobretudo para a rapidez do registro, o reconhecimento do território. Vejo o traço veloz desta pequena imagem: árabe e israelita. Logo depois, na seção dedicada às ilustrações, encontro a multiplicidade com que Portinari abrilhantou, por exemplo, livros de Graham Greene ou André Maurois. Posso apenas reconhecer a mesma dança convulsiva, aplicada antes na paisagem de Cafarnaum, e agora investida na rispidez das Figuras (de 1954, em grafite), feitas para A cidade assassinada, de Antonio Callado. O restante da seção é um mistério mágico.
Os três desenhos surrealistas de 1936, feitos para poemas de Manoel de Abreu, trazem uma densidade lenta em sua textura aveludada, com o sfumato que indica a destreza no uso do carvão. E, se parece inesperado encontrar Portinari praticando surrealismo, mais adiante — nos Estudos para Painéis — juramos encontrar um trecho de Guernica numa peça de 1942, em nanquim. Saímos desta influência de Picasso para, bem perto, flagrar dois desenhos de animais — um tamanduá e uma corça — que se diria pertencerem ao caderno de um artista-viajante do século 19.
Tudo isso é Portinari.
E ainda as cenas religiosas, com este belo Profeta, que me captura pela expressão de firmeza viril. Mais discreta, descubro a avó, Nonna, numa cabeça feita em malha de riscos. Seu traçado é semelhante ao de outra cabeça — este Rosto de mulher, de 1960, que parece surgir de um novelo, com os leves pontos de cor do lápis. Estamos diante de figuras familiares, e esta sensação foi bem premeditada. Dentre tantas técnicas, o artista sabe à perfeição o que usar, segundo o seu intento dramático.
Mas eu me rendo por completo é com esta pequena Mulher chorando, de 1955. O que temos, por um lado, parece tão pouco: uma postura debruçada, que se esconde sob os cabelos, simples feixes verticais a escorrerem por um corpo do qual praticamente se veem somente os pés, esquálidos. Nada poderia ser mais anônimo do que este vulto feminino em desespero — e, no entanto, nada é mais potente como tradução visual de um sentimento, todos os sentimentos pelos quais as mulheres ao longo dos séculos choraram.
Fecho os olhos diante desse quadro, para buscar uma forma de silêncio. Ali, no meu escuro interno, ainda o tenho. Ele está comigo inclusive enquanto termino este texto.
Portinari persiste.