No texto que publicamos nesta coluna, na edição anterior do Rascunho, já observamos como a cor verde — ligada ao universo vegetal — injeta nos contos de Lygia Fagundes Telles uma associação mística, criando uma aura de mistério ou fatalismo. Hoje ainda roçaremos este aspecto, mas nossa ênfase se voltará para o (des)controle das ações e dos estados emotivos das personagens.
No livro Seminário dos ratos, por exemplo, o texto Noturno amarelo narra uma história sobre o tema das relações amorosas destruídas — com a cor verde representando uma espécie de redenção espiritual. Aqui vemos um jovem casal em crise[1], num carro em pane, em plena estrada noturna. O companheiro Fernando, para Laura, é uma “aventura medíocre de gozo breve e convivência comprida”. Ela, porém, vê-se liberta ao sentir o perfume da dama-da-noite, que lhe propicia um retorno às memórias. Mais uma vez percebemos como a presença vegetal aparece com um poder místico, transportando a narradora para o passado: “E atravessei a faixa de manto rasteiro que bordejava o caminho, a barra do meu vestido se prendendo nos galhinhos secos (…). Segui pela vereda. Tão familiar. Como a casa lá adiante, lá estava a casa alta e branca fora do tempo, mas dentro do jardim”.
A recordação lhe traz a imagem de Rodrigo, o seu “amor tumultuado”, que estivera internado num sanatório após a tentativa de suicídio, motivada talvez pelo alcoolismo. Saíra da crise disciplinado, mas transformado em outra pessoa: “Sim, pensava, mas de modo diferente, sem aflição, sem rancor, estava bastante mudado depois da tentativa”.
Observe-se aqui, num parêntese, como o “tumulto” de Rodrigo, na sua falta de controle inicial, pode ser associado a um tipo de loucura. O extravasamento das emoções, nos contos de Lygia, rapidamente conduz a uma interpretação de insanidade: as personagens são rotuladas por sua perturbação e indisciplina. Outros exemplos bastante esclarecedores estão também no livro Seminário dos ratos — é o caso dos contos WM e A consulta. Ambos tratam de doenças mentais; porém, enquanto nesta segunda história o paciente manipula outro indivíduo, assumindo a identidade de um médico, em WM o enredo se tece a partir de personalidades confusas e frágeis, apresentando primeiro um narrador que se preocupa com a doença da irmã e sente que, para ajudá-la, precisa ele “também descer aos infernos”.
A loucura de Wanda se constrói às avessas, a partir das iniciais invertidas das letras M e W: é seu o papel de ensinar o alfabeto ao irmão menor, que se tornará depois o narrador desta história. Num ambiente familiar marcado pela arte, a mãe se destaca como uma figura caótica e imersa na necessidade de aplauso:
(…) era uma atriz famosa, mas agitada como um vento de tempestade. Ou estava estudando algum papel em meio a crises de angústia (era uma perfeccionista) ou estava dando entrevistas, ou experimentando roupas, ou telefonando, levava o telefone para o quarto, deitava e ficava horas falando com uma amiga ou algum amante. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, a cara sempre lambuzada de creme. Não tomava conhecimento nem de Wanda nem de mim.
É nesse espaço confuso, associado a um frenesi criativo, que o descontrole acontece no universo infantil. Surge em Wanda uma compulsão por marcar as letras, uma como inversão da outra, numa espécie de busca da própria identidade:
Uma estranha família, diferente das outras, mas nessas diferenças não estaria o nosso vínculo? Dormi mal, com um curioso sentimento de que devia ficar em vigília. Madrugada ainda, pulei da cama: em todos os meus livros e cadernos, nas capas e nas folhas internas, os dáblios e os emes se multiplicavam em todos os tamanhos e cores.
Mais tarde, no conto, percebe-se que esse transtorno de personalidade é singular, e o foco narrativo, suspeito. O verdadeiro doente é o personagem responsável pelo relato, e Wanda, a irmã, não passa de uma criação de sua cabeça. A esquizofrenia é revelada quando o protagonista se apaixona por Wing (e a constância dessa letra inicial nos nomes é mais um fator estranho a confirmar o desvio na perspectiva da história; afinal, é pouco provável que o médico se chamasse Dr. Werebe, por exemplo. Torna-se mais crível atribuir ao personagem doente essa “adaptação” dos nomes devido à sua insistência pelas iniciais invertidas). A jovem é vítima de sua violência delirante, e através de seu sofrimento somos expostos à realidade:
Quando acendi o abajur, tentou esconder depressa os seios, seus lindos, seus pequeninos seios horrivelmente tatuados com um W e um M azul-marinho em cada bico. Cobri-a com o meu corpo, Wing amada, por que você deixou que ela fizesse um horror desses, eu não te avisei? Não respondeu. Seu olhar atônito ficou cravado em mim, mas do que eu estava falando? Que Wanda? Pois então não me lembrava? Fomos os dois ao homem das tatuagens que prometeu ser discreto, apenas duas letrinhas.=
Já em A consulta, Max, o paciente de um manicômio, assume o posto do psiquiatra, Dr. Ramazan, na ausência deste. Apesar de ser um doente confiável (a ponto de receber a tarefa de ficar na sala do médico e atender o telefone, num dia em que a secretária ainda não havia chegado), Max é um interno do hospício. Talvez dessa maneira justifique-se o impulso imprevisível que ele, apesar das aparências, ainda guarda em si. É isso o que o faz receber um paciente novo, sob a falsa identidade que a circunstância lhe propiciou: estando na sala do Dr. Ramazan, pode fingir ser o próprio, com todo o seu investimento de autoridade. Dentro deste perfil, Max ordena a um homem que cure o seu pânico da morte com uma atitude radical, matando-se.
Neste conto, novamente temos vários elementos recorrentes na obra de Lygia: o verde como uma cor mística ou mórbida (como quando o paciente recorda-se da mãe morta, que lhe estende uma mão a transpirar uma “umidade mole, verde”) e o sexo como oposição da morte, pela plenitude e beleza que escondem a velhice, o fim. O mais importante, porém, parece ser a oposição entre a desordem, representada pela loucura e pelo pânico, e a disciplina — associada aqui a uma normalidade tão extrema, que a cura absoluta dos desvios e emoções só existiria com a morte.
Reparamos, desse modo, que a cor verde na obra de Lygia Fagundes Telles está costumeiramente associada à morte e suas circunstâncias tangenciais (espiritualidade, mistério, etc.), todas contribuindo para o traçado de um comportamento rigoroso, disciplinado — típico da imobilidade dos vegetais (ou dos cadáveres), em oposição à pulsante imprevisibilidade dos seres humanos, que no extremo de suas emoções podem chegar à insânia. Às vezes a vibração vital é tão desorganizada que se torna perigosa e leva, paradoxalmente, a um anseio suicida.
NOTA
[1] A atmosfera é muito parecida à do conto “Lua crescente em Amsterdã”.