O período pandêmico que atravessamos em 2020 trouxe, como uma de suas consequências mais devastadoras, o aumento de crimes contra as mulheres. A brutalidade chegou ao ápice durante o confinamento: em espaços domésticos, ao mesmo tempo em que se protegiam de um vírus, inúmeras pessoas sofreram o convívio forçado com seus agressores. Milhares de histórias de horror familiar aconteceram silenciosamente; algumas até chegaram a ser publicizadas, por atingir um grau extremo (envolvendo morte ou estupro), mas o número de vítimas de abuso ultrapassa vertiginosamente esses casos — até porque são muitas as variantes da violência, dentro de uma tradição machista que tem por hábito menosprezar, repreender e fiscalizar tudo o que concerne ao feminino.
A literatura, claro, não existe imune a essa tradição. Facilmente encontramos passagens (tantas vezes em obras clássicas!) que apostam numa primazia do prestígio masculino, em detrimento do papel da mulher, que circula como figurante ou serviçal. Ora, durante a quarentena, eu — que tenho o privilégio de viver liberta de opressores ou de homens do tipo encosto — encontrei chance de reflexão sobre esse segundo tipo, uma categoria sutil de abusador. A oportunidade surgiu dentro de um projeto de leitura.
Tenho um plano de felicidade clandestina que envolve clássicos russos, lidos ou relidos numa ordem mais ou menos cronológica, permeados por estudos sobre a história do país e o passeio por outras artes: pintura, balé, música, etc. Claro que se trata de um aprendizado inesgotável — mas essa não é uma razão para abandoná-lo. Assim, tendo relido um pouco de Pushkin e Gógol, na sequência eu deveria mergulhar na obra-prima de Gontchárov, o romance Oblómov, que já conhecia por diversas resenhas. Mas nenhum comentário crítico me advertiu para o machismo que iria encontrar neste livro.
Antes que me debruce sobre a obra, entretanto, devo advertir que minha abordagem aqui será restrita a este fio temático. O romance tem muitas qualidades literárias nas construções de cena — sobretudo nos diálogos, que esgrimem um timing cômico primoroso —, mas pretendo apontar apenas seus temperos machistas, tarefa válida por há séculos nos alimentarmos desses pratos culturais, sem perceber como são cozidos. Com isso, obviamente não estou acusando o autor, Gontchárov: ao contrário, o que ele expõe em seu livro pode ser tomado como ironia, crítica — trampolim de reflexão, justamente.
Parece provável que um texto ambientado numa Rússia ainda feudal lance um olhar preconceituoso sobre as mulheres — dirá certa voz genérica — por uma questão de verossimilhança, traço histórico. Mas o livro de Gontchárov complexifica bastante a situação: não somente reforça (ou constrói, dependendo da perspectiva) estereótipos que associam a figura feminina a uma entidade sempre altruísta. A tal respeito, a personagem Olga, musa do protagonista, pretende salvá-lo de sua fleuma, de sua preguiça fatal — e confunde essa dedicação com amor. Vejamos alguns trechos:
E Olga fará tudo isso, ela, tão tímida e silenciosa, a quem até então ninguém dava ouvidos, ela, que mal havia começado a viver! Ela será a culpada de tamanha transformação!
E já havia começado: no instante em que ela começara a cantar, Oblómov já não era o mesmo…
Ele irá viver, agir, bendizer a vida e Olga. Devolver um homem à vida — que glória para um médico quando ele salva um paciente já sem esperança! E salvar a mente de alguém, uma alma aniquilada?…
Porém, o livro não se detém nessa perspectiva, eu dizia. Sutilmente injeta um perfil de superioridade intelectual em Olga, quando expõe sua eterna curiosidade pelos mais diversos assuntos e sua compulsão pela leitura. É um quadro bem diferente do que vemos traçado sobre Agáfia Matviéievna, a proprietária da casa onde Oblómov vai residir, referida sempre como “burra” e absolutamente voltada para a esfera doméstica, tão disposta ao sacrifício que os problemas financeiros apenas lhe pesam porque podem afetar a dieta de seu patrão. Será esta figura de mulher, incessante trabalhadora em prol do bem-estar masculino, que oportunamente o protagonista vai escolher para esposar. A mensagem subliminar se impõe: mulheres que não se dedicam a um homem são preteridas.
Há vários episódios de machismo no livro, em relações diversas (de Olga com Stolz e do empregado Zakhar com a esposa, que aceita suas humilhações e grosserias como se fossem brincadeira), e todas essas passagens podem valer pela crítica ou denúncia. Entretanto, o aspecto mais veemente do livro — por ser o que caracteriza o personagem-título — passa por essa composição de Oblómov: um sujeito criado para as regalias, incapaz de qualquer atitude, um covarde que não toma as rédeas da própria vida. Vamos reler outra passagem:
Olga via até que, apesar de sua própria juventude, a ela cabia o papel principal naquela relação afetiva, que dele só se podia esperar uma impressão profunda, uma passividade fervorosamente preguiçosa, uma eterna harmonia com cada batida do pulso de Olga, mas nenhum movimento da vontade, nenhum pensamento ativo.
Nesse ponto, a voz anônima poderia retornar para dizer que a letargia não é propriedade exclusivamente masculina. Concordo; em termos científicos, nada no cromossomo Y deve estar associado a uma postura blasée ou inerte. Mas, na prática, quantas toneladas de homens não vagam por aí, representando essa atitude que passa incólume porque não é violenta nem ostensiva? Tal machismo parte da ideia de que as mulheres devem ser as mais esforçadas: elas movimentam o mundo, põe o dia para funcionar, fazem coisas, providenciam resultados. E os homens ficam ali, sendo servidos com um ar de tédio ou doença; lastimam-se, estão indispostos ou deprimidos. Repetem frases que começam por “Ah, se eu pudesse…!” ou “Se eu fosse…!”
Sinceramente, faltam-me dedos para contar o número de sujeitos que conheci assim, seja por convívio direto ou mera observação. E, se durante grande parte da vida não consegui nomear esse desconforto que sentia, perto de um homem fraco qualquer, um medíocre à procura de uma escrava, mecenas ou enfermeira que cuidasse dele, hoje tenho bem evidente a definição. É oblomovismo. Um caso específico de machismo, um aspecto que inclusive dialoga com o conceito de imagens de controle desenvolvido por Patricia Hill Collins, para tratar das matrizes de dominação subjacentes à violência, simbólica ou não.
Acrescentemos esse perfil à lista que esmaga as mulheres, observemos como na pandemia as exigências se multiplicaram principalmente para elas. Foram elas, sobretudo, que tiveram de se desdobrar com crianças, idosos, trabalho dentro e fora do espaço doméstico, elas que estiveram muito mais à beira de suicídios ou depressões, sempre solicitadas, responsáveis por isso ou aquilo, com quase nenhum tempo para si. Olhemos para essa realidade oblomóvica e teremos uma ideia da desigualdade que precisa ainda, urgentíssima, ser ultrapassada.