Já tratei da literatura de Siri Hustvedt em textos anteriores nesta coluna — mas preciso voltar à escritora porque recentemente ela me provou como algumas obras parecem nascer da mesma safra, são obras irmãs e, portanto, idealmente merecem ser lidas em sequência, ainda que não pertençam a um ciclo ou “saga”. O que eu amava e O mundo em chamas são, nesse sentido, livros gêmeos.
À primeira vista, o segundo apresenta uma estrutura bem diferente do primeiro, que desenvolve uma narrativa mais clássica. Entretanto, apesar de O mundo em chamas sugerir um dinamismo maior, pela narrativa que se distribui em diversas vozes (Hustvedt circula com maestria por diversos estilos) e pela mistura de textos, que envolvem fragmentos de diários, cartas, depoimentos ou entrevistas, as obsessões temáticas são idênticas. Harriet Burden e Bill Wechsler são protagonistas que produzem, ambos, instalações com caixas, exploram conexões intertextuais e buscam a própria identidade através da arte. Para os dois, seria válido o mesmo resumo: “(…) a trajetória de sua experiência artística se transformou em movimento na direção de uma ambiguidade crescente e sinistra”. (O mundo em chamas)
Apesar de às vezes Hustvedt parecer salpicar seu enredo de âncoras eruditas meio gratuitas, ela também constrói aproximações interessantes (no sentido de imprevisíveis ou estranhas) entre assuntos diversos, que vão se tangenciando pelas realizações artísticas dos pintores. Assim, em O que eu amava a pesquisa desenvolvida pela segunda esposa de Bill Wechsler, Violet, acerca das pacientes histéricas do hospício La Salpêtrière, vira inspiração para uma série de instalações sobre a histeria.
Essas mulheres, vítimas de uma medicina machista —, que até hoje interfere vorazmente nos corpos femininos — eram submetidas a vários experimentos, dentre eles a dermografia, o ato de escrever sobre a pele, induzindo inflamações que pareciam ostentar a assinatura dos médicos, como se eles de fato tivessem a posse dos corpos que tratavam. A posse do pintor sobre a figura que retrata é uma aproximação subliminar que o livro traz, mas, para além desse desejo de “assinar” determinadas alterações físicas, há um interesse no travestimento: uma das histéricas, Augustine, aparece na instalação de Wechsler usando um disfarce de homem, que teria o sido o modo com que ela fugiu do La Salpêtrière. Certamente, isso faz ressoar a ambiguidade dos primeiros quadros de Wechsler, quando ele pintou Violet em variados volumes, emagrecendo ou engordando sua silhueta de uma tela a outra. O título que conferiu a essa série, Autorretrato, indica toda a profundidade dessa fixação ambígua.
Uma terceira e última obra descrita em O que eu amava é inspirada na história de João e Maria, a predileta da infância de Mark, o filho que Bill Wechsler teve com Lucille, sua primeira esposa. Uma série híbrida, com telas e instalações, tanto parece recuperar a proposta deformante dos corpos (pois as crianças, conforme a narrativa do conto, são representadas no início como famintas e esqueléticas e, depois, como cativas da bruxa da casa feita de doces, engordando cada vez mais), como também sugere a síntese masculino-feminino no par infantil, João e Maria. Aliás, o próprio Mark, ao longo de sua adolescência complexa, reprisa esse jogo de travestimento, disfarçando-se de mulher em algumas ocasiões.
Menções à histeria surgem igualmente em O mundo em chamas, com a lembrança de Anna O., famosa referência nos estudos de Breuer e Freud. Essa personagem, como tantas outras mulheres silenciadas, rotuladas ou diminuídas ao longo da história, ressurge como um símbolo de poder. Afinal, O mundo em chamas é um livro poderosamente feminista, que afirma: “Toda artista mulher se depara com a propagação insidiosa do status quo masculino”. A protagonista Harriet Burden decide, então, demonstrar o preconceito de gênero na sociedade, fazendo com que suas obras de arte circulem sob o nome de três homens — que despertam o interesse imediato dos marchands e do público.
Os dois romances trazem reflexões sobre massificação, mercado e mídias, mas em O mundo em chamas encontramos um teor ainda mais direto de denúncia. Num trecho do diário de Harriet Burden, vemos como ela se entrega à paródia de um discurso curatorial: “A aporia na obra de X é alcançada por meio dos processos de autoindução para ausência. Os atos autoeróticos com origem sexual implícitos, portanto invisíveis, dão abertura a um colapso abismal, a fantasias de ruptura e à retirada do objeto de desejo”. Logo adiante, ela admite que “a fabricação dessa prosa pretensiosa e simulada” poderia matá-la, e outra personagem do livro acrescenta: “Críticos de todas as estirpes gostam de se sentir superiores a uma obra de arte; se ela os confunde ou intimida, é mais provável que a destruam”.
Há também a presença de personagens secundários e insanos — o Senhor Bob, um sem-teto que profere bênçãos estranhas e fala sobre móveis antigos possuídos por fantasmas, em O que eu amava, e o Barômetro, outro desabrigado, acolhido por Harriet Burden: um lunático que acreditava registrar, em sua cabeça, cada mudança na pressão do ar. Talvez sejam estes seres errantes, que atravessam os livros parecendo apenas repetir os cacoetes de seus delírios, uma verdadeira chave de leitura para a obra de Siri Hustvedt. Como as esculturas que Harriet produz para recordar o marido morto (os “objetos transitórios”, conforme ela as chama) — e como qualquer coisa ou pessoa, aliás, entregue à velocidade das experiências e, depois, ao apagamento das memórias, tudo vai passar. Tudo é efêmero — e a arte, nessa tentativa patética de vencer o tempo, sempre irá exibir um esforço ambíguo.