Se toda leitura é um diálogo, eu me alegro por mensalmente obter, nas páginas deste Rascunho, um ótimo espaço de troca com José Castello. Sua coluna, A literatura na poltrona, é a primeira que leio — e deixo que as reflexões reverberem: faço um café, releio os parágrafos, penso um pouco, anoto ideias e recomendações de títulos. Como em qualquer boa conversa, o tempo é livre para fluir.
Na coluna de fevereiro, não foi diferente, embora talvez eu tenha demorado mais ainda, antes de passar para as outras páginas do jornal. É que tenho um fraco pelo tema; quando a conversa é sobre imagens, eu perco o horário — quero me debruçar infinitamente sobre o assunto, quero me concentrar nos detalhes.
O veneno da beleza foi inspirado no livro A arte do retrato, de Norbert Schneider. E em seu texto, Castello nos faz percorrer algumas obras: aponta A rainha de Tunis, de Quentin Massys, mostra o Arnolfini celebrizado por van Eyck. Comenta um Rembrandt e um Rubens, nos leva a Botticelli e a Leonardo da Vinci. Eu acompanhei as imagens através das palavras, depois fui buscar as reproduções, lembrei-me de quase todas elas (exceto a do Rubens), voltei às palavras. E logo pensei no Eco da História da beleza e sua antípoda, a História da feiura, livros que obviamente Castello também conhece, mas mesmo assim eu gostaria de folheá-los, detendo-me em exemplos, e dizer: “Estes são os meus preferidos”. Pela simples troca. Pela sensação de conversa.
É verdade que o feio sempre me interessou — pelo seu caráter desviante, espantoso: por aquilo que nos leva a investigar a própria origem da repulsa. Será o medo (cristalizado culturalmente pelas associações do grotesco com o inferno, a doença, as dores) que nos faz fugir da feiura? Ou apenas um infame julgamento de valores, que estima a aparência como garantia do todo?
Na História da feiura, Umberto Eco observa que imagens repulsivas podem ter uso complexo, servindo para inspirar terror sacro, riso ou um tipo específico de fruição. A tradutibilidade da noção de harmonia (ou do seu oposto) é uma tarefa esquiva, pois o seu sentido muda conforme as épocas ou culturas. Mas talvez a percepção do que é feio sirva principalmente para investigar nossos critérios, pesos e medidas que levamos em conta na criação do juízo estético.
Se vejo uma Cruficação de Grünewald e me incomoda o aspecto de um cristo defunto, no seu esgar doloroso, tão humano e íntimo, o que isso diz sobre mim? Que entro em crise com representações divinas e carnais em simultâneo, que busco a ingenuidade de um mito asséptico? É provável — mas não somente. Também me perturbo com estas fotografias de múmias à página 65. Para além do terror das caveiras com seu eterno grito mudo, penso nessa ideia de exibir corpos à maneira de estátuas.
Lembro um debate que acompanhei na época em que a mostra Corpo humano chegou a São Paulo pela primeira vez: o processo de plastinação, que pereniza cadáveres para usá-los como exemplos anatômicos, fazia palpitar uma questão ética. Ali, em exibição, ainda estavam figuras humanas, pessoas que efetivamente percorreram a existência antes de serem transformadas em fósseis sintéticos. Até que ponto o sensacionalismo mórbido superava o interesse científico, no caso? A exposição era completamente legítima, ou o uso de corpos reais levantava um dilema insuperável?
Posso discutir esse impasse, mas nem por isso sou imune ao grotesco. Colocaria no topo de uma lista arrepiante As tentações de Santo Antônio de Dalí, como um dos meus quadros favoritos — mas talvez aí o Surrealismo (pelo seu próprio nome, sua proposta de escapismo) me preserve de um conflito. Algo em mim assegura que este cavalo furioso, estes elefantes com pernas palafíticas jamais chegarão a concluir o golpe que preparam: o desfigurado está fora do real, na proteção de uma fantasia. Assim é grande parte da obra de Dalí: suas formas moles, imprevisíveis, que se esticam, inflam ou convulsionam em desertos inóspitos, estão limitadas pela proposta. É algo que Goya, por exemplo, nunca me deu. Muitos dos Caprichos do artista espanhol me reviram o estômago, e há gravuras da série Os desastres da guerra que são o puro horror elevado à condição de arte.
Mas voltemos à História da feiura. De algum modo o assunto poderia funcionar como uma espécie de poção revigorante, inspiradora — algo que não somente produz recusa, mas, ao contrário, pode ser prazeroso… ou necessário? Ao lado de um Lúcifer hermafrodita, Eco revela que sim. Eu havia parado nesta imagem graças à atração que tenho por gravuras medievais. Elas me trazem um respiro de inocência, um traço pueril, por medonhos que sejam os temas (e alguém já disse que, cronologicamente, somos nós os antigos, em comparação com aquela humanidade dos primórdios, numa vida ainda fresca sobre a Terra). Pois aqui encontro, no texto esclarecedor: “Os monstros terão, por fim, um enorme sucesso no universo heterodoxo dos alquimistas, onde simbolizarão os vários processos para se obter a Pedra Filosofal ou o Elixir da Longa Vida — e podemos supor que para os adeptos das artes ocultas eles não pareciam assustadores, mas maravilhosamente sedutores”.
Atuando à maneira de venenos, filtros ou qualquer tipo de substância para o bem ou o mal, o jogo das aparências permanecerá instável. Basta ver Hieronymus Bosch, com suas telas cheias de figuras tão deformadas quanto misteriosas. Ou então Giuseppe Arcimboldo, que chega ao complexo de unir retrato e natureza-morta, num efeito de delicadeza e monstruosidade que lembra contemporâneas colagens, híbridos digitais (embora o autor tenha vivido há séculos). Quem quiser, pode mesmo arriscar-se por Johan Heinrich Füssli, que não produziu quadros feios — mas o efeito perturbador dos seus sedutores demônios, das suas mulheres que expandem um olhar de loucura, é quase supersticioso: traz a sensação de que a arte pode virar um feitiço.