O diabo e a cabeça

O que nos faz perder a cabeça, a racionalidade, o nosso traço mais humano?
Mikhail Bulgákov, autor de “O mestre e Margarida”
01/10/2022

Se Mikhail Bulgákov, nascido em 1891, leu Edgar Allan Poe, morto em 1849, não podemos garantir — embora exista aí uma boa chance. A probabilidade diminui, creio, para o caso específico de o autor russo ter conhecido, não os famosos textos policiais de Poe, mas um pequeno conto publicado originalmente em Graham’s Lady’s and Gentleman’s Magazine, em setembro de 1841.

Nunca aposte sua cabeça com o diabo é definido como um conto moral, numa irônica estratégia, segundo o seu autor: “Não há razão, por consequência, para o ataque contra mim lançado por certos ignorantes, por eu nunca ter escrito um conto moral ou, em termos mais precisos, um conto com uma moral. (…) Entrementes, a fim de mitigar as acusações contra mim ofereço a triste estória junta, uma estória acerca de cuja evidente moral não poderá haver discussão alguma, desde que aquele que a procura possa lê-la nas letras garrafais que formam o título do conto. Eu mereceria aplausos por esse arranjo, bem mais inteligente que o de La Fontaine e de outros, que transferem o conceito até o último instante e assim o levam disfarçadamente até o cansativo fim de suas fábulas”.

Ora, claro está que esse Poe se afasta do tom de suspense e horror tão familiar à sua obra. A comicidade, que passa pelos recursos do sarcasmo e do absurdo, dá o mote ao texto. Nunca aposte sua cabeça com o diabo, conforme adivinhamos, trata justamente desse enredo: o personagem Toby Dammit, um falecido amigo do narrador, encontrou o seu fim por sempre repetir a frase “Aposto minha cabeça com o diabo”, até que um dia o próprio resolveu aceitar o desafio.

A cena é conduzida pelo delicioso estilo de Poe, tão cheio de detalhes:

Nada o satisfazia senão mover-se e saltar em redor, acima e abaixo de tudo quanto se encontrava em seu caminho, ora gritando, ora ciciando toda casta de estranhas palavras, grandes e pequenas, conservando, no entanto, todo o tempo o rosto mais grave do mundo. Na realidade, não sabia se deveria dar-lhe pontapés ou ter piedade dele. Afinal, tendo quase atravessado a ponte, aproximava-nos do termo do caminho para pedestres, quando fomos barrados por um torniquete de certa altura. Passei por ele sossegadamente, fazendo-o girar como de costume. Mas essa volta não servia ao Sr. Dammit. Teimou em pular o torniquete e disse que poderia saltar por cima dele, de pés juntos no ar.

Ora, isso, conscientemente falando, não achava eu que ele pudesse fazer. O melhor saltador de pés juntos, em todos os estilos, era meu amigo o Sr. Carlyle, e como eu sabia que ele não podia fazê-lo, não acreditava que Toby Damm

O demônio então se apresenta, na incontestável figura de um velhinho coxo, de “venerável aparência”. Apertadas as mãos e feitos os acertos da aposta, temos o trágico desfecho:

(…) Em menos de cinco segundos, após sua partida, o meu pobre Toby tinha dado o pulo. Eu o vi correndo agilmente, alçando-se grandiosamente do soalho da ponte, traçando os mais espantosos floreios com as pernas, enquanto subia. Vi-o alto no ar, pulando admiravelmente, de pés juntos, por cima do torniquete, e, sem dúvida, pensei que era uma coisa insolitamente singular que ele não continuasse o pulo. Mas o pulo inteiro fora questão de momento. E antes que tivesse tempo de fazer qualquer profunda reflexão, o Sr. Dammit recuou para baixo, completamente de costas, no mesmo lado do torniquete, de onde havia partido. No mesmo instante, vi o velhote coxeando, no auge da velocidade, apanhar e enrolar no seu avental algo que caiu pesadamente nele da escuridão do arco, justamente por cima do torniquete. Fiquei bastante atônito, diante de tudo isso; mas não tive tempo de pensar, porque Dammit se conservava particularmente silencioso, concluindo eu que ele deveria estar muito magoado e necessitava do meu auxílio. Corri para o seu lado e descobri que ele havia recebido o que pode ser chamado uma série injúria. A verdade é que ele tinha sido privado de sua cabeça, a qual, depois de acurada procura, não pude encontrar em parte alguma. De modo que me decidi levá-lo para casa e chamar os homeopatas.

Em O mestre e Margarida, Mikhail Bulgákov se vale de um senso de humor semelhante para criticar o regime stalinista. Por causa do alvo político, a obra ficou escondida por mais de duas décadas, sendo lançada postumamente. Podemos apreciar uma grande coragem nessa atitude de vencer a opressão com a comicidade: imaginamos Bulgákov a fazer das tripas coração, como se diz, para investir numa técnica de paródia extravagante, já que o mergulho na realidade seria esteticamente insuportável. Ele demorou dez anos para concluir seu romance, que instaura uma atmosfera fantástica logo no início.

Encontramos Berlioz, “editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscou”, passeando junto ao poeta Bezdômny, que ouve submisso o editor dar “uma espécie de aula sobre Jesus, para destacar o principal erro que ele havia cometido”. A caricatura dos personagens, burocratas que representam a subserviência ideológica (com vários graus nesta hierarquia, lógico), destaca a arrogância de Berlioz, que posa de intelectual dono da verdade — até o momento em que entra num debate com um “estrangeiro”.

Essa figura, que logo adivinhamos ser o diabo, demonstra um conhecimento preciso sobre as questões religiosas e filosóficas que os literatos desenvolviam. Sendo uma entidade infernal, o estrangeiro não está sujeito aos limites do tempo e do espaço: quando ele prevê a morte de Berlioz, o assunto, apesar de causar receio, é tomado como um delírio, pelos outros personagens. Para o leitor, o anúncio soa de maneira extremamente engraçada:

— É, o ser humano é mortal, mas isso ainda seria só metade da desgraça. O ruim é que às vezes ele é mortal de repente, aí é que mora o perigo! E em geral ele não pode nem dizer o que fará na tarde de hoje.

“Que maneira mais disparatada de apresentar o problema…”, raciocinou Berlioz, e retrucou:

 — Ah, vá lá, existe um certo exagero nisso. Sei mais ou menos com certeza como será a tarde de hoje. Mas é claro que se um tijolo cair na minha cabeça no meio da Brônnaia….

— Um tijolo ­— interrompeu sério o desconhecido — não cai nunca sem mais nem menos na cabeça de ninguém. E eu lhe garanto que isso, particularmente, não o ameaça de jeito nenhum. O senhor morrerá de morte diferente.

O diabo anuncia que Berlioz terá a cabeça cortada por uma mulher, e naquela mesma tarde. Portanto, o editor não poderá presidir a reunião na associação literária, às dez da noite, e completa: “Ánnuchka já comprou o óleo de girassol, e não só comprou como já o derramou. Não haverá reunião”.

A afirmação, interpretada como uma charada delirante, explica-se páginas adiante, quando efetivamente Berlioz escorrega no óleo derramado e sofre o acidente fatal com o bonde:

Uma perna incontrolável, como se estivesse no gelo, escorregou pela pedra do calçamento, inclinada até os trilhos, a outra ficou suspensa e Berlioz foi jogado para a frente. (…) Conseguiu virar-se de lado e, com um movimento desvairado, no mesmo átimo encolheu as pernas até a barriga e, virando-se, discerniu o rosto completamente pálido de horror da motorneira com um lenço vermelho escarlate que vinha em sua direção numa velocidade incontrolável. Berlioz não gritou, mas ao seu redor, com vozes femininas desesperadas, a rua inteira berrou. (…) O bonde passou por cima de Berlioz e um objeto redondo e escuro foi lançado para o declive de pedras por baixo da cerca da aleia de Patriarchi. Depois de descer por esse declive, o objeto saltou pelo calçamento da Brônnaia.

Nos dois textos (além do humor que suaviza a morte e da descrição direta, que reprime o páthos), notamos semelhança também num certo caráter vingativo: a represália do diabo, seu poder contra os medíocres orgulhosos. Talvez esteja ali a lição “moral”, mencionada por Poe, e válida para nós até hoje. O que nos faz perder a cabeça, a racionalidade, o nosso traço mais humano? Parceiros do mal nos deixam acéfalos, e isso no fundo é algo ridículo — embora não deixe de ser ameaçador.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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