Como Proust pode mudar sua vida (Intrínseca, 2011), de Alain de Botton, é um livrinho ligeiro e com cara de autoajuda, mas que vale uma leitura pelas curiosidades que traz sobre o escritor francês e sua família. Num dos episódios anedóticos do início, ficamos sabendo que Proust certa vez produziu um artigo de cinco páginas em resposta a um breve relato jornalístico sobre um matricídio: o criminoso, Henri van Blarenberghe, era amigo do autor e, logo após cometer o crime, também se matou.
A meditação proustiana sobre o aspecto trágico da natureza humana mostra o lado profundo daquilo que superficialmente poderia ser rotulado como “loucura” pelo apressado leitor do jornal. Como diz De Botton, “boa parte da literatura e do teatro não teria nos dito nada se tivéssemos nos deparado com seu tema sob a forma de uma notícia breve durante o café da manhã”.
Proust, com seu estilo antissintético (confiram todos os volumes de Em busca do tempo perdido), reitera a lição de que avançar lentamente torna as coisas mais interessantes e pode, inclusive, inspirar mais compaixão. Hoje, quando a velocidade é considerada virtude, desenvolvemos o vício da rapidez em tudo: estimulados pela internet, somos a cada instante excitados, invadidos por comunicações ou anúncios (que nos apressamos em dispensar). Os conteúdos se impõem, bruscos e vazios; mergulhados num constante assalto dos sentidos, andamos aos pulos, num ritmo fugaz e automatizado. Levamos uma vida cada vez menos filosófica, sem espaço para debates longos, sem permissão para contemplar o mundo.
Estão em jogo questões éticas, teóricas ou sobretudo psíquicas, nesses ambientes computadorizados, impostos ainda mais na recente quarentena. O efeito zap — que nos leva a mudar o foco de atenção desvairadamente, considerando um fragmento qualquer como unidade informativa (e assim ninguém examina uma foto, por exemplo, ou lê um texto inteiro no site) — constrói a ilusão de que estamos “ganhando tempo”. Entretanto, adquirimos um vício ansioso, ignorando o que permanece inalcançável por baixo dessa mimese eletrônica.
A pressa é inimiga da perfeição — mas lembramos que o provérbio ilustra não somente a ideia de atitudes afobadas, trabalhos feitos no último momento ou realizados sob urgência. O seu avesso aponta para o perfeito de um ritmo lento, que é a lição mais proveitosa.
Hoje várias iniciativas de consumo sustentável combatem o estilo alucinado de uma produção que acumula e massifica — embora tal postura não seja invenção recente. Tendências contemporâneas na linha do minimalismo e da ecologia, por exemplo, podem vir sob um termo novo, um conceito cheio de carisma ideológico — mas uma pesquisa histórica mostra nossos ancestrais praticando justamente isso: lentidão, posse mínima de bens, processo artesanal no preparo de roupas, alimentos…
Claro, o contemporâneo cobra outra atitude: toda mensagem deve ser recebida — e respondida — de imediato, o vídeo de divulgação não pode exceder um minuto, a encomenda vem na entrega-relâmpago… Sob o mesmo raciocínio, o carro tem de ser veloz; o sono, curto; as relações, fugazes. Nessa estrutura de pensamento, “quem é esperto não perde tempo”. Mas para onde nos leva esse lucro, esse ganho de antecipações e superficialidades?
O fato de que Proust se interessava tanto pela lentidão, na existência e no pensamento, promove um diálogo com Sociedade do cansaço (Vozes, 2019), por antítese. Byun-Chul Han destrincha como a atenção se fragmenta pelo excesso de estímulos e a liberdade se transforma em compulsão, num perverso engano de autogerenciamento: assim, toda carreira ou destino se apresenta à maneira de uma maratona. Em Vida para consumo (Zahar, 2008), Zygmunt Bauman também afirma que “o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades (como suas “versões oficiais” tendem a deixar implícito), mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la”.
Em seguida, Bauman comenta que Stephen Bertman cunhou os termos “cultura agorista” (nowist culture) para denotar a maneira como vivemos em nosso tipo de sociedade: o fenômeno liquido-moderno do consumismo realmente passa pela negociação do significado do tempo. Este começa a ser encarado numa perspectiva pontilhista, com cada instante sendo uma potencial explosão de potencialidades que, entretanto, permanece desconectada com a seguinte. Já não existe uma ideia de fluxo, continuidade entre experiências, e essa perspectiva de salto de um momento a outro, de um ponto ao próximo, favorece a fragmentação, a velocidade.
Diz Bauman: “Sim, é verdade que na vida ‘agorista’ dos cidadãos da era consumista o motivo da pressa é, em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo mais premente que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de descartar e substituir. (…) Ou um big-bang acontece agora, neste exato momento da primeira tentativa, ou se deter nesse ponto particular não faz mais sentido”.
A lentidão é a estratégia dos sábios. Eu já suspeitava de seu poder por associar um ritmo tranquilo à paz e, portanto, à felicidade (ambas parecem iguais, às vezes). Mas agora percebo como a recusa da rapidez favorece a observação que, por si, leva a um estado meditativo. Observar o próprio corpo, agir conforme suas demandas (de sono, apetite, humor) é deixar de vê-lo como máquina programada para funcionamentos específicos — e apressados.
Esse pensamento tão óbvio — de que o corpo é um organismo, um conjunto bioenergético sujeito a ciclos — é revolucionário, porque o capitalismo quer um corpo-engrenagem, adaptado para atingir metas produtivas (e consumistas). Porém, se pensarmos no indivíduo integrado à natureza, tudo se cura e pacifica, inclusive a ideia da velhice se transforma, vista como parte de um processo natural e, na verdade, privilegiado, pois que nem todos chegam a ela.
A observação também guarda o segredo do tempo. Se estamos atentos, percebemos a vida acontecer, não somente deixamos que ela passe descontrolada por nós. E a vida parece querer ser observada: quando paramos para contemplá-la, instantaneamente ela suaviza, fica menos dura ou absurda… já notaram?
Na arte, a observação é essencial — tanto para quem cria, quanto para quem recebe. Em processos terapêuticos, idem. Mas não se pode observar direito o que é veloz; em filmes de ação, o detalhe se perde, tudo se generaliza numa mancha confusa. O estresse acelera; a fuga, por ser um ato instantâneo, é superficial. Útil dentro de um mecanismo de sobrevivência, não deve durar, sob risco de sofrimento físico. A saúde, biologicamente, está associada ao relaxamento e ao descanso — que são também modos de observar.