Agora que a pandemia caminha para um arrefecimento (não quero ainda usar a palavra fim), temos a perspectiva de inauguração de um projeto que nasceu em meio aos piores sentimentos de angústia causados pela covid-19. O Museu da Risada, como o próprio nome indica, cataloga variados tipos de riso — em sonoridade e outras mídias — para que não esqueçamos o benefício do bom humor.
Certa vez, em 2015, visitei uma mostra do Museum of Brokenrelationships, que surgiu na Croácia mas já abriu exposição em diversos países. A melancolia dos objetos — e de suas histórias, todas pertinentes ao acervo de um museu dos corações partidos — fez com que eu ponderasse: por que as pessoas estariam interessadas em relatos dolorosos, fracassos, perdas, e não em um projeto que aumenta a imunidade através da alegria? De fato, é uma questão de saúde pública que as pessoas ouçam outras rirem, porque o mecanismo contagia. Sabemos da prática indiana de, em círculo, juntar um grupo durante um período, para praticar a terapia do riso. A endorfina vai às alturas.
Conversei com o artista Paulo Montserrat, idealizador da coleção de gargalhadas. Ele também atuou como o principal coletor de obras, e me disse como até hoje não inaugurou o Museu porque lhe falta a gravação de certo misantropo conhecido por sua risada enigmática, um som único, que desabrocha como uma daquelas raras orquídeas. Montserrat persegue essa pessoa com um microfone (aventa-se que a risada em questão é mínima e em tom discreto, baixinha, uma risada com tentáculos frágeis e transparentes). Ter a risada desse homem equivale a possuir um Monet no museu.
Entretanto, o acervo já tem grande valor, mesmo sem essa preciosa e específica peça. Para os itens disponíveis — mais de uma centena — disponibilizou-se a descrição em legendas para surdos. Na vindoura exposição, a legenda aparecerá fixada ao lado dos fones de ouvido que transmitem as risadas em áudios. Talvez antes da experiência sonora alguém inclusive se sinta tentado a conferir sua descrição, como quem lê o rótulo de um vinho antes de prová-lo. “Risada aguda atingindo momentos de solfejo, com breves interrupções causadas por apneia” é um exemplo, e suponho que a própria legenda vá gerar novas risadas, fazendo assim com que o museu se retroalimente.
É importante ressaltar que nos aparelhos de escuta as risadas são disponibilizadas sem contexto, mas a legenda acrescenta o perfil da pessoa que a produziu e fornece mais detalhes sobre a risada, se ela é pontual, exclusiva ou típica de uma região (“da Borgonha, com toques levemente sarcásticos”), se foi originada por uma piada de mau gosto ou por elementos cômicos banais etc. O deslocamento do contexto, conforme explica Montserrat, foi necessário para não haver confusões linguísticas ou impedimentos com direitos autorais das possíveis anedotas motivadoras do riso.
O Museu também se incumbiu de contratar especialistas capacitados para estipular uma unidade de medida para as risadas. Inicialmente se cogitou mensurá-las em decibéis — porém, diante do argumento incontestável de alguns cientistas, que lembraram a existência de muitos risos sufocados, risos íntimos ou pouco audíveis, por assim dizer, mas que nem por isso deixam de ser manifestações legítimas, capazes de afetar um organismo com tanta eficiência quanto uma gargalhada estrondosa, a equipe concordou que o aspecto acústico não era o mais decisivo.
A unidade devia considerar espasmos corporais (principalmente na região do abdome), ocasionais lágrimas e congestionamento facial, dificuldade para recuperar o fôlego e taquicardia, suores e, finalmente, a sensação relaxada que sobrevém ao acesso. A escala que pondera todos esses elementos foi obtida mediante certos cálculos, faltando apenas batizá-la. Muitas controvérsias depois, ganhou a proposta que homenageia Henri Bergson, autor do clássico O riso, e assim hoje podemos medir a quantidade e o tipo de resultado cômico em henrisos.
Médicos já estão adotando henrisometrias, para estimar a dose diária que garante a saúde dos pacientes, dependendo de cada caso — e o Museu da Risada fornece inclusive um convênio com planos de estímulo henrisométricos. Uma pequena ambulância, com sirene que imita uma hiena, anuncia atendimentos de emergência para crises de tristeza ou melancolia: a Brigada da Risada está sempre a postos, com parapiadistas especializados em trocadilhos, cócegas ou truques imitativos.
Apesar de tantos desdobramentos científicos, o Museu propriamente dito é bastante prático e econômico. Para se montar uma exposição, basta carregar os arquivos de áudio e legendas; não se exige grande estrutura. A vocação itinerante da proposta combina com o seu caráter holístico: pretende-se que seja uma instituição de frágil materialidade e reduzida burocracia, celebrando a fugacidade no estilo mesmo de um efêmero riso.
No futuro, ainda, a existência de um site disponibilizará o acervo para qualquer parte do mundo, através de um acesso instantâneo. E neste espaço teremos também um pequeno conjunto de fragmentos literários, passagens de autores clássicos que se dedicaram a cenas hilárias, mesmo que tangencialmente. Um dos exemplos que adianto é este, retirado d’Os demônios, de Dostoiévski:
Após essas palavras, a estúpida cara vermelha do capitão (estava chapado de bêbado) se desfez num sorriso largo e aparvalhado. Levantou a mão, enxugou a testa, sacudiu a cabeça desgrenhada e, como quem se decide a tudo, deu dois passos adiante e… de repente bufou uma risada, não alta, mas sonora e modulada, longa, feliz, que fez sacudir-se toda a sua massa fornida e encolherem-se os olhos miúdos. Diante dessa visão, quase metade do público desatou a rir, vinte pessoas começaram a aplaudir.
Não resisto a apresentar esta outra citação, agora do romance Sula, de Toni Morrison:
Nel apoiou a cabeça sobre os braços cruzados enquanto lágrimas de gargalhada pingavam nas fraldas mornas. Era uma risada de dar fraqueza nos joelhos e fazer a bexiga entrar em ação. Seu soprano ligeiro e a gargalhada sombria e modorrenta de Sula criaram um dueto que assustou o gato e fez as crianças virem correndo do quintal, primeiro confusas pelos sons selvagens, depois encantadas em ver a mãe tropeçando alegremente rumo ao banheiro, segurando a barriga, cantarolando em meio à gargalhada: “Ai. Ai. Meu Deus. Sula. Para com isso”.
Dentro da coleção também se poderá encontrar o curioso excerto de uma carta de Flaubert, em que o autor defende que foi certo estilo de riso, uma espécie de cacarejo muito típico, o verdadeiro motivo para que o galo tenha sido eleito o símbolo da França. Essa hipótese ladeia o fragmento de Giorgio Vasari, com o relato da morte do escritor Pietro Aretino, de um infarto provocado por excesso de risadas — prova de que o tema guarda inclusive uma surpresa macabra: a hilaridade fatal.