Modos de envelhecer

“A segunda morte”, de Roberto Taddei, traz para o debate a velhice, esta fase da vida que surge como uma zona cinzenta na perspectiva do futuro
Roberto Taddei, autor de A segunda morte
01/07/2023

A segunda morte, de Roberto Taddei, é um livro que revira fantasmas. Traz para o debate uma fase da vida (justamente, a última) que, em geral, surge como uma zona cinzenta na perspectiva do futuro. Neste romance o protagonista, Gustavo Embaú, sente que se desloca “como um coágulo solto”, numa errância rumo à extinção: ele escolhe fugir de um destino óbvio em hospitais (as dores no corpo e a sua própria faixa etária são anúncios disso) e parte para viver os últimos dias numa praia.

O local escolhido tem importância não somente pelo contato com a natureza, mas por certa ligação biográfica que o personagem resgata e também pelo aspecto simbólico. O horizonte marítimo leva à perspectiva de renovação ou de ciclos intermináveis — afinal, o mar, com sua vasta presença, é a imagem mais clara das travessias:

Está ali, e em nenhum outro lugar em nenhum outro tempo, cercado de coisas pequenas e muito grandes, embalado pela água morna, sem passado ou futuro.

Nesse ambiente novo, Gustavo “tenta lembrar como é experimentar o mundo com os olhos infantis. Chegar a uma praia e desconhecer o sentido de praia. Olhar o mar sem o saber o contrário da terra. Entrar na água e ignorar a existência de vida. E então de repente esbarrar numa água-viva”. Entretanto, embora seja comum aproximar os extremos da existência (na ideia machadiana de “atar as duas pontas da vida”), seria “ingênuo esperar que algum tipo de portal tivesse permanecido aberto naquele lugar, e que por ele voltaria à outra vida em sobressaltos, sem questionamentos, à vida porosa e expansiva da infância e da juventude”.

Gustavo conclui que “não pode mais ser ignorante, apenas senil” — e é com essa disposição amarga, com um mau humor que reconhece ser insuportável, que ele atravessa a nova rotina, sentindo-se aos poucos melhor. A decisão de escapar é um gesto generoso do protagonista para consigo mesmo: “Se quisesse ser punido teria ficado onde estava, sozinho em seu apartamento, na cidade, sendo castigado a todo minuto pela campainha, pelo telefone, pela televisão, pelo barulho dos carros, o trânsito, o sinal de pedestre piscando em vermelho, verde, vermelho, a conta do bar onde ele almoçava um pasto colorido”, todo um contexto fora de afetos.

Sozinho, Gustavo faz passeios pela praia. Nas perambulações ele é um voyeur; espia a vida alheia, ronda as casas e suas janelas, observa atos sexuais em quartos de desconhecidos. Os trajetos se impõem como ritos de passagem; eles o integram à natureza, que é brutal muitas vezes, e proporcionam um inventário de perdas: “no fim de cada trilha haverá sempre pessoas fazendo sexo. Mas não ele, que não está mais em trilha alguma”.

O aspecto sisudo da personalidade desse protagonista é realçado pelo contraste com a presença pacífica da dona da pousada onde ele se hospeda. Bianca Blass também é uma idosa:

(…) são os dois únicos velhos naquele cenário (…). Sobreviveram até aquele momento à morte natural de todos os dias, à morte que havia extirpado do mundo pessoas como eles, supostamente experientes, supostamente preparadas, e possivelmente melhores que eles. Restaram poucos. E ali estão os dois, tipos tão distintos de sobreviventes.

Fica nas entrelinhas dessa comparação a mensagem subjacente de que a mulher envelhece melhor que o homem. Claro que não nos cabe generalizar — mas, na história, Gustavo age por rompantes, manifestando falta de planejamento prático e oscilações emocionais. Em relação a sua fuga, por exemplo, não se organizou; só pensa em comprar roupas ou materiais de higiene depois de já ter partido. Bianca, ao contrário, parece muito centrada, muito mais capacitada para cuidar de si, além de conseguir administrar uma pousada e os conflitos íntimos na lida com um marido em fase terminal pelo mal de Parkinson.

É interessante pensar em como envelhecer consiste em lidar com tantos incômodos — e envolve decisões voluntárias, embora só até certo ponto. Um filme como The father [Meu pai], com Anthony Hopkins, do diretor Florian Zeller, mostra uma derrocada na autonomia, através de uma confusão mental apresentada como um tipo de gaslighting que o cérebro comete consigo mesmo, embaralhando os próprios pensamentos e as referências de mundo, tornadas incertas com a demência. A percepção da realidade é posta em xeque, com os enganos e delírios que parecem se multiplicar. Há “algo estranho acontecendo”, diz Anthony — e isso nos faz pensar em como a nossa individualidade está colada a uma consciência ou a um corpo, com seu funcionamento eficaz. No filme o personagem exibe uma preocupação sistemática com o relógio, se o leva ou não no pulso, se foi ou não roubado, numa comovente ilusão de domínio de tempo, nessa existência que se dá por lapsos.

Há uma figura no romance de Taddei que encarna um fantasma similar, associado a um envelhecer vulnerável. Heitor, o marido de Bianca, é a confrontação com uma espécie de envelhecimento que em geral resume os piores medos: “Aquele corpo impulsionado pelo ventilador mecânico é somente um resto insepulto. Tudo o que não quer ser”. Esse retorno à condição de objeto, tal como a que experimentamos na primeira infância, quando nos manuseiam e nos manipulam, é o extremo da vulnerabilidade:

Seu coração, seus pulmões, seu sangue. Será que já pode se libertar dos pronomes possessivos? Seriam seus, afinal, se já não executam as tarefas que espera deles? Ou talvez ajam com uma sabedoria que desconhece? O conjunto de peças que compõem seu corpo parece tomar uma decisão: desligar-se e poupar energias para sobreviver.

Heitor ilustra a primeira morte implicada no título do livro, numa circunstância que envolve Gustavo de um modo muito mais intenso do que ele viria a imaginar, graças ao convívio com Bianca. A partir dessa tríade de personagens, Taddei elabora um romance pungente, necessário para inúmeras reflexões que talvez — por covardia psíquica — tenhamos o hábito de evitar. Mas agora não mais.

A segunda morte
Roberto Taddei
Companhia das Letras
132 págs.
Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho