O hábito que tenho — de ler mais de um livro ao mesmo tempo ѿ fez com que na minha cabeceira acontecesse um encontro entre As pequenas chances, de Natalia Timerman, e A repetição, de Søren Kierkegaard. Uma feliz circunstância essa, pois, de modo premeditado, eu não poderia jamais montar um diálogo que foi construído com tanta sintonia, pelo acaso.
O romance da escritora paulista pode ser classificado como uma elegia ao pai morto: com uma protagonista homônima à autora, caminhamos no território da autoficção, experimentando o sentimento de adentrar a intimidade mais delicada de todas, a do luto. Em contrapartida, o filósofo dinamarquês cria um alterego, Constantin Constantius, para refletir sobre o mecanismo das insistências, num ensaio que mescla humor e epistolografia aos debates sobre ética. Mas, apesar das dissidências de estilo, propósito, cultura etc., os pontos de afinidade entre os dois livros são impressionantes.
Lacan também pensou sobre o tema da repetição (sobretudo no Seminário 2) e chegou a investigar a compulsão das retomadas como uma tentativa de reconstituição ou de superação. Para Kierkegaard, o amor-repetição é o único bem-aventurado, pois traz a segurança: uma pessoa “só se cansa do novo, mas não das coisas antigas, cuja presença constitui uma fonte inesgotável de prazer e felicidade”. Este é um ponto de vista bem calcado na reconstituição de sentimentos primários, associados à infância — quando o reconhecimento de uma situação, e do afeto que a acompanha, pode instalar um conforto psíquico capaz de dissipar o medo e a incompreensão que em geral rondam crianças muito pequenas.
Lidar com o desamparo e elaborar a violência do vazio em saudade são procedimentos inescapáveis diante do luto — por isso, o consolo das repetições chega como uma estratégia saudável. Kierkegaard afirma que somente “a relação com Deus pela fé possibilita a repetição”. Ora, a crença que a maioria de nós sustenta, de um encontro com os seres amados num além-vida, seria uma repetição dessa espécie, a única viável dentro das circunstâncias, transcendente.
No livro de Timerman, o anteparo da fé suaviza os dias subsequentes à morte do pai. Quando o real surge, insuportável, recorre-se a procedimentos de desvio, uma autopreservação emocional através das práticas religiosas:
[…] e eu, que nunca fui judia, quer dizer, que desde a adolescência ignorei a religião da minha família, me vi de repente cumprindo cada ritual com um alívio impensável alguns meses antes, como se tudo que eu quisesse ou precisasse naquele momento fosse que simplesmente me dissessem como me portar ou o que fazer, que me dessem uma lista de tarefas para existir.
Assim como é referido, na história, o pai falecido — Artur — como um “mestre da atitude”, poderíamos definir Natalia Timerman em sua dicção sobre o luto. Há uma serenidade que sustenta os gestos, não os faz resvalarem em desespero. A repetição, novamente ressaltamos, é apaziguadora. Por meio dos costumes ancestrais, recupera-se um espaço de conforto:
[…] pela primeira vez me senti amparada pela religião, não por Deus, mas pelos meus antepassados, que conheciam a dor que eu sentia e haviam inventado rituais que tentavam acolhê-la, amenizá-la, circunscrevê-la.
Essa estratégia de passar pelo simbólico afasta a devastação de uma realidade dura demais, da qual a própria linguagem não dá conta:
[…] a dor que eu comunicava não era a mesma que eu sentia, há um abismo entre ambas, mas as cerimônias são um teatro necessário, pois por trás delas não há nada, é isto a morte, nada, e isso não é possível suportar.
Na segunda parte d’As pequenas chances, a convergência com o ensaio filosófico atinge seu maior grau, quando a autora comenta:
Uma das dores do luto é se deparar não apenas com o fim da vida, mas com o fim definitivo da história, que não pode ganhar do futuro novos significados e versões, apenas do passado. Então buscamos novas versões do passado como se fosse um jeito de a história continuar.
Parece que lemos, num palimpsesto, Kierkegaard:
[…] o que existiu começa a existir agora de novo. Sem a categoria da memória ou da repetição, a vida se dissolve num estrépito vão e vazio.
A morte é um tema infinito, sabemos. Há bastante especificidade no relato de As pequenas chances: ocorrências biográficas, topológicas etc. Platão dizia que o conhecimento é uma recordação e, nesse sentido, ao recordar-se do pai, nas minúcias e nas cenas repassadas pela memória, Natalia Timerman o conhece profundamente, restaura a sua intimidade com ele. Para além dessa perspectiva, porém, o romance dá um salto para a abordagem de um sofrimento comunal — na medida em que a perda de familiares é uma situação enfrentada por praticamente todas as pessoas.
Há uma identificação com o processo de luto, com a raiva surda contra “as amenidades que parecem um desperdício” e com o pasmo diante “da ciência da aberração do meu corpo, de ter um corpo”, de participar desse esquema vital que um dia se finaliza. A própria percepção do tempo se modifica, com a constatação de que “o ‘jamais’ pode ser quebrado pela realidade, mas o ‘nunca mais’, não”.
Se repetir é do interesse da metafísica, conforme queria Kierkegaard, podemos concluir que recordar os mortos é uma forma não somente de manter o nosso amor por eles, mas também um modo de construir um “contato efetivo com a ideia de eternidade”.