Luminol, de Carla Piazzi, é um exemplo de romance-fluxo, um “alargamento” por histórias que se cruzam através de três narradoras, misturando gêneros, temas e assombros. Todo o livro parece assentar na ideia explicitada à página 28: “Quando a gente sabe o que as palavras carregam, elas não nos deixam mais em paz”.
A fertilidade normalmente é encharcada. Pensei nesse princípio biológico diante da vastidão de Luminol, e recordei certo artigo* de Robert Smithson — um dos principais nomes da Land Art — sobre os “projetos de terra” que podem ser aplicáveis a várias matérias artísticas, inclusive a literária. Diz Smithson:
Palavras e rochas contêm uma linguagem que segue a sintaxe de fendas e rupturas. Olhe para qualquer palavra por bastante tempo e você vai vê-la se abrir em uma série de falhas, em um terreno de partículas, cada uma contendo seu próprio vazio. Essa linguagem desconfortável da fragmentação não oferece nenhuma solução gestalt fácil.
Assim é a experiência de Carla Piazzi: um romance desdobrável em diversas instâncias. À maneira da Land Art, cava-se também, e revolve-se a terra, buscando por suas muitas camadas. Um trecho que bem representa isso é o da página 35, quando a protagonista Maya explica:
Foi a primeira vez que pensei nas minhas avós como filhas, e então percebi que havia uma cova entre a gente, eu era filha sem mãe. Elas eram filhas de filhas, que eram filhas de filhas… Fui aumentando, aumentando o mundo, até que algo mudou. E tudo passou a ser invadido pelo tempo, um tempo escorregadio, cujo avanço se dissolvia em giros e recuos. Até a materialidade das coisas era e não era a mesma. Elas estavam ali, mas foram perdendo consistência até se aproximarem cada vez mais do pó; primeiro o da madeira, depois o do café, da farinha, do talco, do arroz, até chegar na poeira. E a poeira ganhava água, virava barro, que ganhava ar e endurecia, ganhava sangue e virava gente, que ganhava alma e se mexia. Comecei a matar e a ver nascer as coisas do mundo, as que se mexiam e as que nunca mudavam, e essa vertigem passou a dar o tom da minha infância.
A mise en abyme dessa busca por uma reconstituição ancestral, perseguindo a sequência das materialidades que ligam os indivíduos, é a chave para compreender a proposta estrutural do livro. Por muito que ele se dobre em outras direções, como um origami de vozes em tempos variados, há um retorno à compulsão escavadora. Quase ao final, já na perspectiva da personagem Quindim, lemos a seguinte passagem:
De repente, percebo que Maya está colocando o lampião ali dentro, no centro daquela cova. E retoma o tom de leitura, como se no fundo daquele buraco tivesse um livro: “Não é um túmulo, necessariamente, apesar de eu acreditar que haveria um baita ganho no brilho e no sentido da vida se fôssemos acostumados a cavar, ou pelo menos iniciar, cada um o seu próprio túmulo. (…) Por enquanto, é um desejo intenso de avivar a terra: tira daqui, põe ali. Uma tá presa, e a outra, solta, como minha mãe e eu. Também pode ser mais um jeito de contar o tempo. Ou um buraco que, em vez de dar a ideia de vazio, de falta, de defeito, pode ter um sentido positivo: uma ode ao lapso, ou ao esquecimento. Pode ser tanta coisa… Pode dar num poço, numa toca, na cova pra uma árvore, num túnel”.
Cavar as profundidades de si é o segredo para encontrar um manancial, um terreno fértil. Nesse percurso subterrâneo, o que se descobre instaura uma específica forma de olhar — como propõe Smithson, em outra parte do artigo que citamos:
O clima da visão muda de úmido a seco e de seco a úmido de acordo com as condições climáticas da mente de cada um. As condições que prevalecem na psique de uma pessoa afetam a sua maneira de observar a arte. Já ouvimos falar muito a respeito da arte cool ou hot, mas não muito a respeito da arte “úmida” e “seca”. O observador, seja ele um artista ou um crítico, está sujeito à climatologia de seu cérebro e de seu olho. A mente úmida aprecia “piscinas e poços” de tinta. A própria ‘pintura’ parece ser um tipo de liquefação. Tais olhos úmidos adoram olhar superfícies que fundem, se dissolvem, se encharcam, que às vezes dão a ilusão de tender na direção de algo gasoso ou nebuloso, de uma atomização.
O artista ou crítico com um cérebro molhado está fadado a acabar apreciando qualquer coisa que indique saturação, um tipo de efeito aquoso, uma infiltração generalizada, descargas que submergem percepções em um lance de observação gotejante. São gratos a uma arte que evoca estados líquidos generalizados, e desdenham da dessecação da fluidez. Valorizam qualquer coisa que tenha um aspecto empapado, seja tela ou aço.
Agora lembro as charnecas de Florbela Espanca, os versos marítimos de Cecília Meireles. O turbilhão dos labirintos de Borges e mais o emplastro generoso das pinturas de van Gogh, o efeito cintilante das telas impressionistas, as ninfeias eternas de Monet. O brilho no bronze da escultura de Boccioni, Brígida Baltar coletando neblina e a lâmina quase líquida no efeito dos bichos da Lygia Clark, além de tantas outras referências, inclusive musicais, que me vêm na forma de fluxo recordativo. Heráclito diria que o rio está também dentro de nós, caudaloso — e talvez a melhor forma de medir o tempo fosse com a chuva pingando das árvores, não com a areia descendo (mas se diz escorrendo: então tudo bem) da ampulheta.
Carla Piazzi fala que seu romance nasceu do “isolamento das madrugadas”. Talvez, como sua personagem Maya, ela pudesse declarar igualmente: “O tédio e a clausura me convenceram de que livro era brinquedo sim”. Mas que brinquedo tão complexo e sofisticado se elaborou com Luminol: cheio de escavações úmidas, brilhantes.
* Uma sedimentação da mente: projetos de terra, publicado no livro Escritos de artistas – anos 60/70 (org. de Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Zahar, 2009)