Literatura em riste

Os ensinamentos da boa arqueria também podem ser muito úteis aos escritores
Ilustração: Carne Levare
01/03/2024

A arte cavalheiresca do arqueiro zen, de Eugen Herrigel, é um clássico — mas só eu me interessei recentemente por ele, em parte devido ao esporte e, em parte, por todas as ligações que investiguei entre arco e flecha, fotografia, alvos, tiros certeiros etc. A literatura, certamente, poderia entrar nesta lista de associações? Ora, se o zen-budismo serve para toda e qualquer coisa na vida…

Logo no início do livro, Herrigel esclarece que a arqueria tem o seu menor valor na dimensão atlética; conforme explica, o resultado dessa atividade é uma “intuição prájnica”, associada a uma sabedoria transcendental. Com toda a dificuldade de entendimento que nos esmaga no Ocidente, ainda podemos nos aproximar dessa experiência através da meditação, da “transcendência dos limites do ego”.

Embora o livro esteja voltado, assim, para uma reflexão espiritual, que mostra como por meio da arqueria se pode atingir uma experiência mística (“No fundo, o atirador aponta para si mesmo e talvez em si mesmo consiga acertar.”), torna-se válido também para pensar sobre a literatura. Afinal, a contemplação dos ambientes e das pessoas, a disponibilidade imaginativa, a espera e a mira sobre a palavra exata são atos familiares aos melhores escritores.

Há alguns conselhos claros, que servem universalmente. A importância da respiração — como em qualquer prática meditativa — é ressaltada como um meio indispensável, bem como a concentração. Esta, entretanto, não é uma atitude rígida: “tudo depende de que, esquecidos por completo de nós mesmos e livres de toda intenção, nos adaptemos ao acontecer: a execução de algo exterior desenvolve-se com toda a espontaneidade, prescindindo da reflexão controladora”. É possível que essa passagem seja a mais difícil para compreendermos — e aplicarmos em literatura. Mas no final do volume o autor relembra algumas ações surrealistas, que, com o automatismo psíquico, aproximaram-se do efeito espontâneo que o zen budismo sugere.

Há também a recomendação de rituais: uma sequência de preparativos tem a capacidade de sintonizar a pessoa, relaxando-a e concentrando-a nos gestos a cumprir na criação de sua arte. Podemos lembrar quantos escritores já não declararam seguir uma rotina — às vezes até excêntrica — que produz um tipo de atmosfera propícia ao trabalho.

Mas engana-se quem imagina que este livro se converte num manual de produtividade e estratégias para alcançar o sucesso. Um trecho recorda que estamos diante da proposta de esvaziamento zen:

O homem é definido como um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando não pensa e não calcula. Devemos reconquistar a ingenuidade infantil, através de muitos anos de exercício na arte de nos esquecermos de nós próprios. Nesse estágio, o homem pensa sem pensar. Ele pensa como a chuva que cai do céu, como as ondas que se alteiam sobre os oceanos, como as estrelas que iluminam o céu noturno, como a verde folhagem que brota na paz do frescor primaveril. Na verdade, ele é as ondas, o oceano, as estrelas, as folhas.

A beleza desta noção de vazio é que ele se torna o contrário da nulidade, por envolver a integração absoluta com o mundo, através da técnica de uma plácida observação sem desejos de mudança ou julgamentos. Tal método nos prepara para o principal:

A arte genuína não conhece nem fim nem intenção. Quando mais obstinadamente o senhor se empenhar em aprender a disparar a flecha para acertar o alvo, não conseguirá nem o primeiro e muito menos o segundo intento. O que obstrui o caminho é a vontade demasiadamente ativa. O senhor pensa que o que o não for feito pelo senhor mesmo não dará resultado.

Aplicando à literatura, ressaltamos a necessidade de confiar no fluxo e na capacidade que têm as histórias de seguirem um curso próprio, sob a condução, mas não o total controle, do autor. Assim, mais adiante o livro expõe como o desprendimento traz os melhores fins:

Não teria a impressão de que as diferentes fases do processo realizador se deram através de suas mãos, como que emanadas de um poder superior, e não saberia jamais com que força embriagadora o vibrante impulso de um acontecimento é capaz de transmitir-se a quem é, em si mesmo, mera vibração, pois tudo o que faz está feito antes que o saiba?

A conclusão, páginas depois, é firme: “a criação autêntica só é possível num estado de desprendimento de si mesmo, durante o qual o criador não está presente como ele mesmo.”

A essência de todo movimento criativo está na elaboração de um produto íntimo: “A arte da obra interior que não se desprende do artista como a exterior, a que ele não pode fazer, mas unicamente ser, surge das profundezas”. Trata-se de um resultado intrínseco e intransferível, que não conhece público e, portanto, não se submete a interpretações. Fora da esfera do cognoscível, a arte interior, meditativa e mística, seria o grande objetivo de quem procura evoluir verdadeiramente.

Entretanto, todas essas considerações talvez sejam nada mais do que delírio, diante da doutrina zen. Lembremos outra fala do mestre, no livro:

O senhor está enganado se pensa que pode tirar algum proveito da compreensão de tão obscuras conexões, inalcançáveis para o intelecto. Lembre-se de que na natureza ocorrem coincidências incompreensíveis, e não obstante tão comuns que nos acostumamos a elas: a aranha dança sua rede sem pensar nas moscas que se prenderão nela.

Adotemos, portanto, a teoria taoísta do wu-wei (vontade passiva, vazio pleno), para dançar também um texto: sem pensamentos, sem tensões ou intenções — apenas seguindo o rumo dessa literatura, mantendo uma postura que aponta.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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