Quando Michel Foucault se pôs a escrever Isto não é um cachimbo, fazia poucos meses que René Magritte (autor do célebre quadro homônimo) tinha morrido. Cinquenta e cinco anos depois, este curto livro continua uma obra indispensável para se pensar sobre questões de representação. No Visada — Grupo de Investigação do Texto Visual —, coletivo de encontros que coordeno na Universidade Federal do Ceará, recentemente exploramos as possibilidades desta leitura.
Foucault começa por se dedicar a um desenho de 1926, dentro da série de experiências magrittianas das quais, com certeza, a mais famosa é a tela a óleo que mostra a figura de um cachimbo suspenso num fundo marrom, acima da frase “Isto não é um cachimbo”. O jogo paradoxal, que costuma levar o espectador a sorrir e duvidar, na verdade explica-se de maneira bem lógica: um desenho não se confunde com a coisa real, posta no mundo. Isto é o desenho de um cachimbo, não um cachimbo de fato — eis o que o gesto do pintor quer indicar.
A interpretação, porém, ganha em complexidade, se analisamos a tela com base na dupla composição (verbal e visual) que ela apresenta. Concentrando-nos na frase, apenas, podemos nos voltar para o signo determinante, o isto, que obviamente não é, sob possibilidade alguma (lexical, visual ou existencial) um cachimbo. Esse abismo representacional, gerado pela distinta natureza das linguagens, faz com que jamais possamos atribuir aos vocábulos o mesmo tipo de “colagem” com o mundo que as figuras podem ter.
Sabemos (já desde os estudos de Saussure, que fundou a Linguística) como a constituição de uma palavra funciona como uma moeda de duas faces — significante e significado —, sem espaço para o objeto real. Essa independência da língua, sua capacidade de funcionar como um instrumento comunicativo autônomo, garante a sua complexidade psíquica: a partir do instante em que o sistema linguístico é aprendido por um indivíduo, sua mente dispensa estímulos externos para que tal idioma seja utilizado. É corriqueiro, entretanto, que a palavra funcione como substituto do real, nas evocações as mais diversas de imagens mentais que produzimos, por exemplo, ao ler. Mas mesmo assim (como demonstra Foucault, e não somente ele), o caráter da linguagem verbal cria uma distância com a figuratividade, não se confunde com as formas dos objetos — portanto, essa substituição, ou simulacro do real, acontece num nível diferente do que encontramos na pintura, nos textos visuais.
O imediatismo da decodificação é um ponto que “facilita” o reconhecimento das formas, que então leva automaticamente ao tema, quando lemos uma imagem. No caso de quadros, desenhos ou fotografias de cunho realista, é isso o que acontece, em geral: um processo simplista de exame que leva o nosso cérebro, diante da tela, a detectar a silhueta arredondada do fornilho, depois estirada, do tubo, e a partir daí constatamos a familiaridade desse perfil com um objeto conhecido (e, dentro da cultura belga de Magritte, ainda mais do que para nós). Não falta nada para que possamos garantir intimamente: isto é um cachimbo. O pintor, porém, nos diz o contrário, e bem abaixo da imagem, à guisa de título ou legenda.
A contradição instaurada pelo diálogo entre texto verbal e visual pode parecer, a alguns, característica do surrealismo. Magritte, ao contrário de outros artistas desta estética, não foi um extravagante que se dedicou a pintar cenas de pesadelo ou fantasmagoria. Criou figuras híbridas, sim, e situações impossíveis que desafiam as leis da física — mas constantemente sua paleta, e mesmo as proporções de seus quadros, além do traço, sempre tão perfeito e contido, têm um pendor minimalista. Mais do que chocar o espectador, Magritte desejava levá-lo a pensar, a partir de uma dúvida, uma estranheza ou vaga inquietação.
A problemática representacional detalha-se na obra de Foucault com a distinção entre semelhança e similitude. Cito, em edição da Paz e Terra (1988):
A semelhança serve à representação, que reina sobre ela; a similitude serve à repetição, que corre através dela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer; a similitude faz circular o simulacro como relação indefinida e reversível do similar ao similar.
A similitude, portanto, ocorre dentro de um espectro amplo, muito mais produtivo: “A similitude multiplica as afirmações diferentes, que dançam juntas, apoiando-se e caindo umas em cima das outras”. Em contrapartida, o próprio Magritte afirmava, conforme lembra Foucault, que “só ao pensamento é dado ser semelhante; ele assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece; torna-se o que o mundo lhe oferece”. A imagem mental, ou a palavra pensada, substitui o objeto do mundo, dispensa-o — o que não é, absolutamente, o procedimento instaurado pela criação plástica. A pintura se impõe como “afirmação do simulacro, afirmação do elemento na rede do similar”, e tal consciência a liberta de um papel meramente ilustrativo.
Vale a pena lembrar como Magritte, em seus Écrits complets (Flammarion, 2001), por diversas vezes refletiu sobre as fronteiras e propósitos da arte — particularmente sobre diferenças entre comunicações linguísticas ou imagéticas. Ele pontua, por exemplo, que “uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade” e que “tudo tende a fazer pensar que não existe relação entre um objeto e aquilo que o representa”: reflexões que convergem com as ideias foucaultianas há pouco mencionadas.
Outros aspectos — como a percepção de que “num quadro nós vemos de maneira distinta as imagens e as palavras” e “as figuras vagas têm uma significação tão necessária e perfeita quanto as bem definidas” — provavelmente serviram de mote para que Foucault, a partir do capítulo três de seu livro, trouxesse obras de Klee e Kandinsky para mostrar como, apesar de atenderem a outras estéticas, elas alcançam o mesmo estado de desconstrução que vemos nas ambiguidades de Magritte.
Klee, em alguns quadros, justapõe formas e signos:
Barcos, casas, gente, são ao mesmo tempo formas reconhecíveis e elementos de escrita. Estão postos, avançam por caminhos ou canais que são também linhas para serem lidas. As árvores das florestas desfilam sobre pautas musicais. E o olhar encontra, como se estivessem perdidas em meio às coisas, palavras que lhe indicam o caminho a seguir, que lhe dão nome à paisagem que está sendo percorrida.
Kandinsky, ainda mais desapegado do “laço representativo”, interessava-se apenas pela composição em sua estrutura interna, pelas “coisas” que pertenciam àquele texto visual, “afirmação nua que não toma apoio em nenhuma semelhança e que, quando se lhe pergunta ‘o que é’, só pode responder se referindo ao gesto que a formou: ‘improvisação’, ‘composição’; ao que se encontra ali: ‘forma vermelha’, ‘triângulos’, ‘violeta laranja’; às tensões ou relações internas: ‘rosa determinante’, ‘para o alto’, ‘centro amarelo’, ‘compensação cor-de-rosa’”.
A gramática dos três artistas não se vincula em nenhum procedimento (Foucault ressalta que “ninguém, em aparência, está mais longe de Kandinsky e de Klee do que Magritte”), mas a sua mensagem é idêntica. A suposta exatidão das formas em Magritte se torna um modo secreto de questionar obviedades — talvez até com efeito mais perturbador do que aquele atingido pelo estilo abstrato.