Reflexos de sonhos no sonho de outro espelho é uma obra de Adriana Varejão que retoma o quadro de Pedro Américo, despedaçando o já despedaçado Tiradentes clássico. Em diversas telas que simulam superfícies polidas, refletoras, vemos um corpo de mártir flutuando em vários ângulos, boiando infinitamente, na sua mise en abîme. Formas feitas no escuro, de Leda Cartum, me transporta à mesma atmosfera de fragmentação. No seu livro, as histórias têm esse arranjo de quadros tranquilos, mas com cenas sempre muito insistentes, e cheias de dor.
Podemos pensar em Sísifo — ou Tântalo — dentre tantos mitos de repetição, para fundamentar os enredos de Cartum. Encontramos, no volume, um homem perseguido por feras oníricas, enquanto outro, que peleja para içar uma âncora, com o balanço do movimento às vezes “tinha a sensação quase nítida de já estar navegando”. Há uma tônica de espera, de preparação para um clímax que se anuncia interminavelmente:
Um homem em repouso mantinha em alerta partes secretas de seu corpo: ele estava disposto a enfrentar criaturas, combater inimigos, lutar contra monstros — só que eles não chegavam, não compareciam.
Na orelha de Formas feitas no escuro, Angélica Freitas destaca que vários textos podem ser considerados metáforas sobre o ofício de escrever, e creio que justamente o território criativo, com suas áreas nebulosas, expectantes, traça um caminho nesse sentido. Não à toa, os personagens do livro andam sempre na fronteira entre dois mundos, sendo um deles terrivelmente misterioso. De maneira mais ou menos pavorosa, todos parecem viver dentro de um pesadelo, e cada história, com seu tom lendário, concentra-se nas ações — quase nunca em vozes. Não ouvimos estas figuras; não há trocas verbais — e a própria ideia do título combina com uma situação secreta.
Podemos lembrar Susan Sontag, que num dos ensaios de A vontade radical comenta como “a obra de arte eficaz deixa o silêncio em seu rastro”: “Ainda que o meio do artista sejam as palavras, ele pode participar dessa tarefa: a linguagem pode ser empregada para conter a linguagem, para expressar mutismo”. No caso de Leda Cartum, a divisão do livro em três partes distribui pela perspectiva pronominal — ele, tu, eu — uma voz solitária, que se comunica à maneira dos presságios, ou como quem deixa vazar um sinal para uma dimensão paralela.
A atração pelo abismo é uma tendência de muitos relatos, e o minimalismo reforça esta proposta: estamos sempre à beira de algo, com cenas que se abrem para um desfecho inalcançável. Olhamos este precipício e não vemos o seu limite; cada texto se faz pela vertigem — e também pelo tom exótico, que muitas vezes lembra Italo Calvino, n’As cidades invisíveis.
Mas eu gostaria de voltar ao esboço de outros paralelos com a arte de Adriana Varejão, inclusive porque a capa de Formas feitas no escuro me remeteu a certa paleta da artista, na sua série de ladrilhos, Saunas e banhos. O aspecto labiríntico — com pulsação de mistério ou esconderijo — igualmente se encontra nas palavras de Leda Cartum, e se pensamos no modo como os seus textos retornam a determinados motivos, ao longo das três partes do livro, podemos falar de uma espécie de ladrilhagem enquanto processo criativo, tal como Lilia Schwarcz comenta, em artigo feito para o livro Entre carnes e mares (Cobogó, 2009), sobre a obra de Varejão.
Outras peças da artista visual — como as azulejarias em “carne viva” — são investigações sobre a possível “pele” e “recheio” das pinturas. Curiosidade semelhante vemos no seguinte trecho de Cartum, interessada na pesquisa em torno do que há por dentro das coisas — e o que sustenta suas formas:
E agora que tudo se mostra por dentro você prova o miolo quente de todas as coisas, experimenta a polpa mole, moldável, que aparece por baixo da casca endurecida: os objetos estavam imóveis por causa da crosta grossa que revestia cada um deles, mas nesse momento derretem, fundem-se uns aos outros como partes de um mesmo maremoto.
O exame, entretanto, nunca é definitivo. Algo escapa da descoberta, desliza furtivamente para se manter às ocultas. Se de fato entendemos Formas como metaliterário — no impulso de revirar as palavras, mergulhar em suas possibilidades imagéticas (assim como a pintora testa os limites do quadro, propondo rasgos, fissuras, demolições) — não é porque esperemos um resultado. Não existe lição, síntese ou tese a ser provada após estas experiências. Existe apenas rendição ao mistério.
Leda Cartum, que diz ter passado sete anos escrevendo este livro, bem poderia estar se dirigindo a ele — o seu livro —, quando compôs a seguinte passagem, sobre uma figura furtiva:
(…) talvez os astrônomos, que reviram o universo para um dia apanhar uma estrela ainda sem nome e que se extinguiu há milênios, talvez eles entendam por que você se retira sempre que escuta um chamado, ou por que se esconde no escuro assim que recebe uma forma. Ou então é um bicho arisco: prefere que a porta permaneça entreaberta para vigiar o quarto enquanto alguém dorme na cama. Você não sussurra, não se manifesta, não assombra nem assusta; você é tudo o que demora.
Este é um livro para ser lido lentamente, tal como foi escrito.