Dentro da caixa escura

O clique da fotografia acontece inclusive sobre o olho de quem a contempla
31/03/2018

Há um ano Fortaleza ganhou um Museu da Fotografia e, quando conheci o espaço, senti que recuperava uma das melhores experiências estéticas que já tive. No final de 2015, encerrando minha estada de pesquisa justamente voltada para a arte fotográfica, visitei Charleroi, cidade belga conhecida por ter um magnífico museu na área.

Eu sempre entro nestes locais como quem explora uma catedral: vou em busca do silêncio e do sagrado. Há algo em mim que precisa recuperar um senso mágico. A fotografia — antigamente eu pensava — era a linguagem que com maior dificuldade me traria um grande impacto. Por sua banalização cotidiana, sua presença invasiva em tantos e diversos lugares, ela precisava mesmo ser muito boa, para me chamar a atenção. E ainda restava a dúvida quanto à “necessidade” de um museu que lhe fosse específico. Reproduzir fotos em livros, vê-las em catálogos, paredes ou postais não trazia uma equivalência? Mas a reprodutibilidade técnica não aniquilou a aura, oh Walter Benjamin.

Quando vi pela primeira vez uma exposição de Francesca Woodman — com as imagens no tamanho que a artista tinha escolhido para elas (e que era menor do que as impressões em qualquer livro) —, quando vi sob o vidro o papel pigmentado que estivera sob as vistas de Diane Arbus — quando tive ao alcance Cartier-Bresson, quando conheci na mesma sala (e por isso, para mim eles estarão sempre juntos) a finlandesa Susanna Majuri, o tcheco Pavel Banka, a mexicana Erika Harrsch… O único prazer comparável ao Musée da Photographie chegou à minha cidade, e não preciso mais morrer de saudades.

Ultrapassando a experiência pessoal, que — óbvio — não se repete (e quiçá nem se transmita), há fatos relevantes, de um alcance coletivo. O Museu da Fotografia em Fortaleza promove encontros, oficinas e workshops. Atua em comunidades carentes, com a ajuda de uma equipe educativa que ensina crianças a montarem câmeras Pinhole para produzir fotos artesanais. Ativou também recentemente o hábito do cineclubismo, com exibição gratuita de filmes clássicos premiados por fotografia, e ao longo destes meses trouxe importantes exposições.

Para além da Coleção Paula e Sílvio Frota, cujo rico acervo foi o elemento motivador da construção deste espaço, o museu apresentou, a partir de outubro, a obra de fotógrafos brasileiros em conflitos armados. Na linha de frente fez o público conhecer imagens contemporâneas feitas na Líbia, na Síria, no Iraque e em outros países, com a participação dos seus autores num ciclo de palestras. Ouvir Gabriel Chaim, João Castellano e Felipe Dana foi, sem dúvida, uma chance de refletir sobre questões que toda arte (que digo eu? que todo gesto humano) potencializa: território, política, liberdade, existência.

Meses antes, eu tinha ouvido naquele mesmo auditório uma palestra de Izabel Gurgel, sobre Frida Kahlo. Izabel estava interessada “em como a Vida se manifesta na forma Frida” — com as múltiplas visadas que o tema permite. As reflexões passaram pela fotografia como uma “insistência na repetição”, pela perda da memória (que equivale à perda do próprio rosto), pela “elaboração estética de si”, por álbuns de família vistos após um luto, pela ficção como “uma potência de desenho interior”… até a ideia de uma Frida-palhaça, com “sua entrega radical de presença”, inclusive — ou principalmente — diante dos desconcertos, do que não se sabe.

Essa palestra foi mais uma situação irrepetível, um privilégio que o museu trouxe à cidade. As digressões, as costuras temáticas diante do repertório de imagens aconteceram naquela tarde. Em outra, virão pensamentos diferentes, porque o contexto será diverso. E o Museu da Fotografia, na concepção dos arquitetos Marcus e Lucas Novais, reprisa de propósito uma caixa mágica, um dispositivo de captura. Somos presos pelo impacto — e, ao mesmo tempo, arremessados.

O clique da fotografia acontece inclusive sobre o olho de quem a contempla. Foi por causa dele que num janeiro de exílio tive um bem-estar imediato com certa imagem de Brigitte Grignet. Ela mostra uma jovem com os cabelos esvoaçando, prestes a pular de um pequeno muro, o mar espumoso logo atrás. Há um cão que espera a mulher, de costas para nós, e também não vemos o rosto dela. Tudo parece mistério, nessa foto em preto e branco onde o negrume do cabelo, da saia e do cão mantém o equilíbrio. Depois descobri que foi feita no Chile — mas não importa: quando vi a foto, exposta na galeria Satellite, do cinema Churchil em Liège, subitamente voltei à Beira-Mar de Fortaleza. Isso me bastou. Clic.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho