Uma escapada em direção a uma praia deserta, para recompor as energias e ânimos, fez com que eu lembrasse os textos de Alan Pauls. Algumas passagens de A vida descalço me puseram em discordância completa, sobretudo quando — fotografando miríades prateadas no solo monazítico — eu constatava como qualquer território pode ser heterogêneo e rico. Pauls comenta no livro:
Espaço imberbe e liso, atravessado por dobras, mas livre de dobramentos, a praia é um lugar franco, transparente, aberto ao céu (…). Tudo está ali desdobrado, explícito, o que se vê é o que existe. Estamos no império do visível; não há fundos falsos onde se esconder nem margens para segredos. Os enigmas não cabem na lógica da praia.
Ora, mesmo que não se considere a parte líquida (com seus subterrâneos inacessíveis, cheios de imprevisibilidades) como parte da praia, mesmo com essa concessão deturpada, que suprime boa parte da definição deste tipo de lugar, ainda assim o largo território de areia teria uma “condição hipervisível” apenas por um efeito superficial. Quem se detivesse a examinar uma faixa mínima, em sua composição multifacetada de grãos, texturas, elementos químicos envolvidos no amálgama farinhoso desse mundo, logo mudaria de opinião.
Entretanto, relendo A vida descalço, entendi a perspectiva de Alan Pauls. Uma divertida passagem do livro serviu de esclarecimento. Trata-se de um momento em que o autor denuncia a idealização das praias como espaços sexuais. Tomando para análise uma célebre cena do filme A um passo da eternidade, Pauls afirma:
Nunca deixo de pensar na desconsideração da areia molhada, dura como uma tábua, provavelmente minada de bivalves invejosos, tão proteica e múltipla que cinco segundos mais tarde, quando o diretor Fred Zinnemann decidir cortar a tomada, já terá se transformado numa legião de cristaizinhos insuportáveis e fará das suas nas virilhas de Burt Lancaster e Deborah Kerr (…); penso na contribuição do mar, capaz de atrapalhar com sua onda mais tímida o mais entusiasta acasalamento humano; penso no efeito irritante do sal nos olhos (…). Esfregar-se com outro corpo na areia, agarrar-se atrás da cortina no vestiário de uma barraca, acabar nus no refluxo das águas: as proezas mais clássicas do erotismo de praia são para mim, além de inverossímeis, exemplos perfeitos de tudo o que “não pode ser” o prazer: desconforto, aspereza, hostilidade, interferência.
Páginas adiante, endossa:
Não suporto a areia como leito sexual, e ninguém ignora, por mais que os hidrólatras esperneiem, que a água, principalmente a do mar, dificulta qualquer tipo de fricção erótica; só um louco se atreveria a fornicar com o sol cravado no meio do céu e só uma vítima do lirismo publicitário dos anos 70 apregoaria as benesses de uma escaramuça amorosa ao entardecer.
Deixando de lado as preferências do autor para o enlace afetivo (inclusive porque o valor literário nunca se fixa em curiosidades que podem ou não ser realmente confessionais), concordamos com o fato de que “o cruzamento entre a areia e a carne é longo e complexo” — e justamente neste ponto elaboramos uma hipótese.
Alan Pauls é conhecido por desenvolver um balé frasal ao estilo de Proust ou Lobo Antunes, artistas para quem a sintaxe vira espacialidade vasta, elástica. A sua propensão para sinuosidades entra em atrito com a paisagem nua e tão homogênea (aparentemente) de uma praia. Entregar-se ao olhar sem disfarces, sem mistérios, é um ponto negativo para a pulsão erótica — que se manifesta, vale recordar, não somente através do sexo. Trabalhar com muitas camadas, para Pauls, desperta o seu interesse libidinoso-escritural, e é por isso que, tratando diretamente da potência erógena da praia, ele admite que ela é possível, sim, “desde que entendamos a praia como o que deve ficar fora do quadro para tornar-se erótico e o erotismo como lógica labiríntica” (grifo nosso).
Mas os amplos cenários — mesmo quando representam a “homogeneidade um pouco despótica da natureza” — também ajudam o escritor. O convite à divagação põe Alan Pauls bem à vontade, disposto ao fluxo digressivo, como se esticasse uma caminhada pela orla. Tal aspecto justifica que tenha feito um livro sobre um tema a priori tão árido para suas escolhas. O motivo autobiográfico, relacionado aos anos de infância veraneando em Cabo Polonio, não seria suficiente sem um ímpeto primordial, que o fisgasse irremediavelmente — e este se encontra no outro lado da vasta nudez pouco misteriosa das praias: o local não indica os desdobramentos secretos, mas pode servir para longos passeios verbais que, ao fim, geram a complexa estrutura — a tessitura do texto — que seduz.
Em outros livros do escritor, conferimos a importância dos mistérios condensados através da metáfora da roupa de baixo (a anágua da professora em O passado e o forro descosido da roupa do vizinho militar em História do pranto). Essa lembrança se torna valiosa, por comparação, para que entendamos até que ponto vem acompanhada de espanto a afirmativa de que “a praia é o único espaço público onde a nudez quase completa não é uma exceção nem uma infração provocadora, e sim um princípio de existência, uma forma de vida”. Se as pessoas se apresentam sem roupa de baixo, ou seja, sem segredos ou esconderijos físicos, tornam-se irreconhecíveis: “vestidos não somos os mesmos que de maiô, e quem nos vir entrando no mar provavelmente não nos reconhecerá à noite tomando sorvete na calçada ou dançando na discoteca”.
O subterrâneo do corpo é um correspondente para o fluxo interno, labiríntico, da linguagem. Em História do pranto, a própria ideia líquida do choro induz ao extravasamento, como nesta passagem: “
Tem a impressão de que o mundo nunca foi tão injusto: só ele tem o direito de chorar, mas seus olhos estão de tal maneira secos que poderia esfregar um fósforo neles e acendê-lo. E é esse mesmo direito que sente que lhe negam, a ele, que tem mais condições do que ninguém para merecer isso, ele que vê e reconhece e ainda por cima se vê obrigado a contemplar, enquanto segura o prato de bolo marmorizado, no outro, em seu amigo, feito uma lágrima, como uma condecoração mal atribuída, a mesma espécie de privilégio descarado pelo qual suspeita que os camponeses da Idade Média, quando fartos, ou seja, a cada morte de bispo, amotinam-se e degolam em algumas horas de frenesi a família de nobres cujos pés estão acostumados a beijar todos os dias.
Em História do cabelo, a profundidade das mechas atua com idêntico efeito, na cena em que cabelos e língua são exemplos do sinuoso:
Duas coisas o rondam, no entanto: primeiro, a imagem dos dedos dela abrindo caminho por entre os caracóis do seu melhor amigo, o meneio da patrulha de soldadinhos voluptuosos que exploram cada canto daquela selva escura e de repente, lânguidos, abandonam-se ao toque das mechas espiraladas, cedem à resistência que lhe opõem as matas mais espessas e por fim, exaustos, ficam quietos, como que camuflados no emaranhado de cabelo, à espera da próxima batalha; segundo, a intensidade, a energia com que se beijam, e principalmente a duração dos beijos, tão dilatada que às vezes ele, que desde aquele primeiro dia de aula já não consegue dar um passo no colégio sem encontrá-los, sem surpreender um nos braços do outro, trançados numa daquelas cerimônias de sucção mútua que os raptam do mundo, tem a impressão de que vão parando de se mexer, aplacam a respiração, deixam-se embalar pelo ritmo da única coisa que continua viva neles, a dança muda de suas línguas, e acabam dormindo.
A obsessão literária de Alan Pauls aponta para uma correnteza incontida, que se expande, vai se empoçando em alguns pontos, mas em muitos outros desliza, apenas, pela superfície. É nesse sentido que, apesar de perceber a praia através do seu elemento seco, a areia (representando um valor “em que as coisas e os seres podem se encontrar e se conectar sem que se vejam comprometidos a confundir-se”), o escritor ainda aqui resgata “o poder inspirador do que se deixa reduzir, isolar, decompor, e até mesmo — por mais disparatado que isso soe — enumerar”. Essa é a sua saída libidinal pela escrita, e naturalmente o percurso nos convida a um devido mergulho nos livros.