Para fechar este ciclo de textos sobre a obra de Raduan Nassar, abordamos agora com mais detalhes uma característica apontada por alguns críticos como marca estilística do autor: o barroquismo, ou tendência neobarroca. A manifestação deste aspecto se verifica tanto por uma carga temática oposicional, carregada por antíteses, quanto, principalmente, por uma linguagem hipertrofiada, que faz lembrar os paroxismos daquela tendência estética. Tais indícios, como veremos, muitas vezes funcionam como suporte dramático para os conflitos teatralizantes encontrados nessas histórias.
É ponto unânime entre os estudiosos que a estética barroca supõe, antes de tudo, um domínio de opostos. Gilles Deleuze, estudando a obra de Leibniz, comenta que “no Barroco, o claro não para de mergulhar no escuro”, dando uma noção da atmosfera dualista que se forma a partir destas oposições. Em outro momento, o mesmo autor nos diz: “No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa: sempre inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade orgânica ou cerebral”. Este conflito tradicional entre carne e espírito foi exemplarmente vivido por André e Ana, em Lavoura arcaica.
Em Um copo de cólera, como pudemos observar, também abundam referências à ambiguidade. O divino e o profano igualmente estão presentes. Assim como ocorre com o André de Lavoura arcaica, o discurso da personagem masculina de Um copo de cólera é herético em alguns momentos, fundindo o lado espiritual com o carnal: “(…) mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades”, atingindo a junção entre “sacro e obsceno”.
A tensão dramática que explode em Um copo de cólera por meio do discurso representa fielmente o desequilíbrio barroco, o angustiante jogo de opostos que faz o texto oscilar entre o claro e o escuro. Não será por acaso que a personagem deste livro se descontrola ao perceber a brecha feita pelas formigas, na cerca-viva da fazenda. As formigas simbolizam o poder de organização, o comedimento e o equilíbrio que o fazendeiro não tem, pois é constantemente consumido por explosões emocionais: “porque só eu sei o que sinto, puto com essas formigas tão ordeiras, puto com sua exemplar eficiência, puto com essa organização de merda”.
A mulher, por extensão, é representada como formiga: “era um inseto, era uma formiga” — e, como tal, torna-se objeto de ódio do companheiro: “é ali que eu haveria de exasperar sua arrogante racionalidade”. Todo o conflito desta obra nasce de oposições: contraste entre masculino e feminino, emoção e razão, corpo e espírito…
Se em Lavoura arcaica o dualismo vinha basicamente pela diferença entre gerações, em Um copo de cólera a lição de Raduan Nassar sobre a dificuldade dos relacionamentos humanos parece se completar. Aqui, os traços neobarrocos são fundamentais para o conflito teatralizante. O homem é capaz de misturar “coisas monásticas e mundanas”, comentando que “a prosternação piedosa correspondia à ereção do santo”, assim unindo os pólos libidinoso e religioso numa fusão de opostos.
Além disso, não à toa o narrador fala do seu “discurso hemorrágico”, estilizando-se em plasticidade. Vários são os momentos em que comprovamos esta forma exasperada: quando a personagem diz que estava “esticando prazenteirissimamente a goma das palavras, mascando esta ou aquela como se fosse um elástico”, ou quando comenta que verteu “bílis no sangue das palavras”. A cada trecho percebemos que as palavras assumem uma função crucial no conflito entre os personagens: se não serve para comunicar a verdade (pois que na realidade as palavras surgem como um disfarce para os artifícios do jogo), a linguagem leva-nos, com maior proximidade ainda, ao caráter teatral desta narrativa.
A própria estrutura circular do relato nos leva à elipse, que, como ressalta Affonso Romano de Sant’Anna, é o traço definidor do Barroco. Até mesmo o erotismo é cheio de curvas, neste livro: ora a mulher se enrosca no homem feito trepadeira, ora a união dos corpos se dá em “movimento dúbio e sinuoso”.
Em Lavoura arcaica, por sua vez, o discurso antilinear da memória também nos leva ao rebuscamento elíptico do tempo, e os indícios neobarrocos são frequentes. Logo no início do livro, quando Pedro chega à pensão onde André se refugia, as janelas do quarto estão fechadas. Quando André abre as janelas, a entrada de luz simbolicamente antecede as palavras religiosas do irmão mais velho, que tinha os “olhos plenos de luz”. Firma-se, assim, já uma oposição de claro-escuro, antítese barroca também expressa no dualismo angústia X serenidade, representado por André e Pedro, respectivamente.
Em muitos outros momentos, André revela um comportamento barroco — ele está “cheio de sentimentos dúbios”: ora se sente possuído de raiva, quando diz, por exemplo, que “uma sanha de tinhoso me tomou de assalto quando dei pela falta dela”, ora se volta para a religiosidade, mesmo que diluída no pecado. Em determinado instante da sua conversa com Ana, vemos uma referência explícita ao citado estilo: “(…) dispensemos nós também o assentimento dos que não alcançam a geometria barroca do destino”.
Assim como é o descontrole do pai que ocasiona o final trágico da narrativa, as extravagâncias de André e Ana também acarretam os conflitos e a tensão que marcam toda a história deste livro. Da mesma forma que em Um copo de cólera, observamos o dualismo e a angústia — traços essenciais no Barroco — contribuindo para gerar o foco dramático em Lavoura arcaica.
A disposição ambígua do enredo destes livros, que oscilam entre o épico e o dramático, confirma a nossa hipótese do estilo neobarroco como condição intrínseca para o discurso teatralizante de Raduan Nassar. De fato, esta parece ser a preferência do escritor: uma obra enriquecida pelos extremos. Mesmo em sua opção de vida, pode-se perceber o comportamento neobarroco, como ressalta José Castello:
Resta-nos pensar, como leitores estupefatos, que Raduan quer mas não quer — e isso perturba. Há quem chegue a pensar que sua atitude não passa de um jogo, aliás bastante banal, para chamar a atenção; outros preferem achar que Raduan está só fazendo uma ironia, e que seu jogo de esconde-esconde nada mais é que uma figura de linguagem __ talvez um zeugma, forma em que o enunciado, uma vez excluído, na verdade permanece em cena, agora subentendido, e cada vazio (ou aparente negação) apenas o repete.
Affonso Romano de Sant’Anna também confirma o caráter ambíguo da figura conhecida como zeugma, uma das formas da elipse: “Na retórica, a elipse é falta, carência e ocultamento. Elipse: dupla inscrição: excesso e falta. Repetição e diferença. Antíteses”. Raduan Nassar, ao se ocultar para o mundo literário, ao mesmo tempo continua a ser expor, através da riqueza de sua obra.