As caminhadas

Em “Equatoriais”, Maurício de Almeida costura com destreza aspectos históricos com o cotidiano de seus personagens
Maurício de Almeida, autor de “Equatoriais”
01/02/2024

Equatoriais, volume de contos de Maurício de Almeida, é descrito como “um livro sobre as estradas que cortam o Brasil e seus povos originários”. O autor foi vencedor do prêmio Sesc de Literatura (com seu primeiro livro de contos, Beijando dentes, publicado pela Record em 2008) e do prêmio São Paulo (com o romance A instrução da noite, editado pela Rocco em 2017). Antropólogo de formação, Maurício de Almeida costura com destreza aspectos históricos com o cotidiano de seus personagens.

O texto-título já apresenta uma contundente reflexão sobre os massacres de indígenas na raiz de nossa formação nacional. A narrativa se desenrola à medida que acompanha o trajeto do protagonista num caminho que recupera épocas, não somente paisagens. Nesses ambientes onde “tudo é prosaico e definitivo”, pensamos sobre o bárbaro, o diferente, o alvo de preconceito — e sentimos a ressonância de um grande problema de desentendimento.

Conforme apontam Karnal e Estevam, no recente Preconceito — uma história (Companhia das Letras, 2023), somos “ensinados, culturalmente, em grupo, a odiar e segregar. (…) Nem sempre um ser humano reconhece outro ser humano como igual ou semelhante. Ao analisarmos historicamente esse mecanismo de construção do outro, podemos refletir sobre como ele é comum. Houve vários momentos históricos em que nossos antepassados (mas isto pode ser dito também de muitos contemporâneos) viram seus semelhantes como diferentes, menos humanos, sem traço algum de humanidade. (…) O jogo relacional do eu e do outro e a produção de preconceitos e toda a violência deles decorrente parecem historicamente presentes em nossa memória partilhada”.

No caso do Brasil, esse amálgama de exclusões trágicas fica bem evidente — e, no conto de Almeida, o protagonista anda, assim, reverberando o passo dos fantasmas. Narrar é uma solução, embora não definitiva:

Minha agitação talvez seja vermelha: como lhe contar que vi e ouvi o que a retórica do extermínio desumaniza? E mesmo assim a palavra não é suficiente se lhe digo que estão sendo mortos.

A preocupação metalinguística aparece também logo adiante, a propósito do próprio percurso — e de seu início: “Origem é um lugar e um tempo, penso, e mesmo essa ideia talvez seja um jogo de palavras”. Esta, aliás, pode ser a principal qualidade da literatura: dar significado ao passado, fabulá-lo e reconstruí-lo, para que se torne suportável?

Em outros contos, encontramos passagens bem poéticas, com personagens que transitam apesar de não saber se são “relógios ou astrolábios”, mas seguem como um “complexo harmônico, comunhão de dentes” a “colocar em movimento a maquinaria da vida”. Cada texto em primeira pessoa desloca o(a) leitor(a) para uma percepção nova, faz adentrar o universo de figuras diferentes.

Destaco Estuário, texto em que se acompanha o desgosto de um filho obscurecido pelo pai, músico sobre quem se faz um vídeo:

Por isso, ao ver essa pantomima da qual ele se apropriou, esse documentário que só referendará o ídolo, compreendo que estou aqui apenas para reafirmá-lo superior, permanecendo figurante nessa história estúpida que fez da minha vida uma confusão por tanto tempo. E, se assim for (como se o benefício da dúvida servisse a todos): busco o conforto de uma dor cotidiana? Devo declarar com todas as letras que não pactuo com esse desleixo nem me deslumbro com o estilo desregrado (meu trabalho engravatado, as demandas da rotina, minha esposa em casa), que não entendo a devoção pelo narcisismo desse homem infantilizado que calhou de ser meu pai?

No final, o próprio filho dá a notícia de que vai ser pai — e sabe que mais um ciclo se instaura: “(…) pressinto a confluência turbulenta dessas águas com o mar e a difícil liberdade que precede o encontro, porque, se há conflito, há também caminho: o rio se estende continente adentro — e me alegro”.

Mas talvez o grande tema de Equatoriais sejam as viagens, os trânsitos e fugas, as formas de perambular. Do conto Ouroboros, salta uma frase: “Se vivemos intensamente, coisas novas aparecem”. Esta parece ser a grande esperança — a ânsia repetitiva que lança os personagens à estrada.

As viagens se fundem à existência, a partir da metáfora dos enxertos, presente no conto Sobre as causas das plantas:

É provável que os chineses utilizassem a enxertia de plantas desde três mil e quinhentos anos antes de Cristo. Teofrasto refere-se a tal procedimento no tratado botânico De causis plantarum por volta de 300 a.C., Virgílio a descreve em suas Geórgicas. Os registros são antigos, o gesto é elementar à criação: a união de duas partes para se conceber algo novo.

A maioria das personagens de Almeida vive dessa maneira híbrida, carregando o enxerto de suas travessias. Em Adentro, lemos que “para nosso mais íntimo horror, pressente-se que há uma espécie de imperativo inexplicável cobrando a continuidade ainda que não se saiba a razão, como se, por haver caminhos, devêssemos caminhar”.

Essa compulsão dinâmica, ritmo obrigatório da própria existência, surge explícita também no conto Asfalto: “caminhamos para não morrer e nem deixar morrer, caminhamos a despeito da culpa, apesar de qualquer coisa”. É a reconstrução da vitalidade, página a página, pela diligência de cada um dos textos de Equatoriais, que faz deste livro uma ótima escolha para pôr-se em movimento — seja através de ênfases etnográficas ou ficcionais —, numa expedição por suas histórias.

Equatoriais
Maurício de Almeida
Maralto
160 págs.
Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho