Ada, ardente

O romance "Ada ou ardor" traz marcas constantes do estilo de Vladmir Nabokov, tais como a erudição, a ironia e o gosto por trocadilhos
Vladmir Nabokov, autor de “Ada ou ardor”
01/08/2021

Nabokov certa vez afirmou que “a espiral é um círculo espiritualizado. Na forma espiral, o círculo desenrolado, desmanchado, deixa de ser vicioso. A volta segue a volta e toda síntese é a tese da nova série”. Esta sugestão é crucial para entender alguns de seus livros, dentre eles Ada ou ardor: vamos perceber como esta obra completa o desenho espiralado iniciado por Lolita.

Normalmente classificado como ficção científica pela história situada num outro planeta (a Antiterra), que é uma espécie de mundo paralelo, mas extremamente parecido com o nosso, na verdade Ada não cabe em rótulos. A permissividade de um vago cenário alienígena encontra ressonância nos livros que o próprio personagem Van escreve, praticando, num movimento às avessas, ciência ao modo de ficção: “(…) de repente ocorreu a nosso velho polemista que todas as obras que publicara — até mesmo as extremamente abstrusas e especializadas Suicídio e sanidade (1912), Compitalia (1921) e Quando um alienista não consegue dormir (1932), para citar apenas algumas — não eram tarefas epistemológicas empreendidas com rigor intelectual, e sim exercícios joviais e belicosos em estilo literário”.

O gosto pelo jogo, pelo exercício narrativo complexo, extravasa neste livro. Não esqueçamos que o autor russo era um respeitado enxadrista, além de entomólogo, um homem que foi educado em diversos idiomas e, dentro de sua erudição, aprendeu a manejar a ironia como poucos.

Em conferência disponível na web, Alessandro Piperno, após resumir a biografia de Nabokov — do nascimento numa aristocrática família russa, no último ano do século 19, passando pela fuga dos bolcheviques, o exílio e a tragédia familiar de perder pais e um irmão durante o nazismo —, ressaltou que o escritor costumava apontar como sua grande tragédia pessoal o fato de ter tido que abrir mão da língua russa, para escrever na “pobre língua inglesa”. O comentário revela um orgulho especialmente sagaz, pois — se Nabokov foi um gênio inquestionável na produção literária — somos levados a pensar no grau de excelência vertiginosa de seus livros, caso tivessem sido escritos em sua língua nacional, onde ele se sentiria mais confortável.

Entretanto, aqui cabe também uma desconfiança: o desconforto (se é que na prática isso existia) de criar ficção em língua estrangeira pode ter levado o autor ao brilhantismo, pela consciência profunda das possibilidades e riscos de um idioma — consciência que escritores monolíngues desenvolvem com menor velocidade. Além disso, em sua infância Nabokov já teve acesso à língua inglesa (assim como à francesa), o que garantiu sua profunda familiaridade com este sistema (consta que as primeiras palavras que pronunciou foram em inglês). Ainda poderíamos argumentar que os nove livros que escreveu em russo, antes de passar para o inglês, não foram necessariamente mais brilhantes que os outros…

Retornando a Ada, notamos que o refinamento deste livro traz, por um lado, marcas constantes do estilo de Nabokov, tais como a erudição, a ironia, o gosto por trocadilhos e, como ressalta Aurora Bernardini, o anti-pathos. A cena do suicídio de Lucette, nesse sentido, é uma das mais primorosas que a literatura já produziu. Por outro lado, parece haver também o desejo de construir uma espécie de represália à incompreensão que Lolita, anos antes, tinha sofrido.

Em sua última entrevista televisiva, Nabokov comentou como as capas das edições contribuíram para a deturpação do seu romance mais famoso. O sucesso comercial, aparentemente estimulado pela sugestão de uma protagonista que virou emblema de precocidade erótica, sufocou o verdadeiro enredo. As imagens, fotografias ou desenhos de ninfetas nas capas dos exemplares, criaram resumos imaginários para pessoas que nunca se deram ao trabalho de ler o livro, ou lê-lo por inteiro — e, mesmo para os leitores reais, a pressão por aderir a uma tendência de interpretação distorceu sentidos, fez com que as palavras efetivas do texto às vezes se tornassem menos importantes que sua fama.

O apelido Lolita, conferido pelo personagem Humpert Humpert, indica a fetichização de uma garota absolutamente comum e nada maliciosa, uma criança que se chamava Dolores e, ao contrário de ser uma pequena femme fatale, foi a vítima, a refém de um homem perverso. Em contrapartida, Ada ou ardor traz, sim, crianças altamente sexualizadas.

O livro constrói uma história de escândalo familiar: dois irmãos (que inicialmente acreditam ser primos), Van e Ada, tornam-se amantes quando têm 14 e 12 anos de idade — e aqui temos realmente a figura de uma criança cheia de libido, porém não manipulada e nem vítima dos desejos masculinos. Ada é ardorosa em seus impulsos e, ao longo do relacionamento incestuoso que durará toda a vida, esbanja infidelidade e gosto pela transgressão, inclusive envolvendo-se numa relação lésbica com a irmã, Lucette. A chave para que compreendamos esta personagem como uma Lolita revisitada — dentro da perspectiva da sugestão deturpada que o outro romance sofrera — está numa cena de filme, interpretada por Ada já adulta e atriz, quando lhe cabe o papel de uma cigana chamada justamente… Dolores. Parece significativo que possamos ler, no trecho em questão, a seguinte frase: “Não é mais a Dolores de outro homem, mas uma mocinha mergulhando o pincel de aquarela no sangue de Van…”

Sem castigos moralizantes que persigam esta paixão proibida, parece que as referências distópicas na história servem muito mais como ressalva ao protesto do leitor. Alguém que acusasse Nabokov de ter exagerado no exercício de sua liberdade criativa, sempre poderia receber como resposta: Ah, mas isso aconteceu na Antiterra, em outro planeta. No entanto, as circunstâncias físicas dos habitantes deste território são praticamente iguais às nossas. Uma prova está na longa exploração filosófica que o personagem Van produz, escrevendo um livro intitulado A textura do tempo. Ele admite que é “uma empreitada curiosa, essa tentativa de determinar a natureza de algo que consiste em fases ilusórias” — mas nem por isso evita a tarefa, e todas as suas reflexões encontram validade na nossa experiência terrestre. Confiram:

(…) a não-consciência envolve tanto o Passado quanto o Presente por todos os lados, sendo uma manifestação não do próprio Tempo, mas do declínio orgânico natural de todas as coisas, tenham elas ou não consciência do Tempo. O fato de que eu saiba que os outros morrem é irrelevante no caso. Também sei que você, e provavelmente eu, nascemos, porém isso não prova que passamos pela fase temporal chamada Passado: meu Presente, meu breve período de consciência, diz-me que isso aconteceu, e não o trovão silencioso de infinita inconsciência que marcou meu nascimento.

Há muitos outros trechos interessantes, que buscam discernir Tempo de Espaço. A mistura desses conceitos, para o autor-personagem, “pode ser agradável, sobretudo quando se é jovem”. Mas ele acrescenta: “Ninguém conseguirá me fazer acreditar que o movimento de um corpo (digamos, um ponteiro) ao longo de um pedaço específico de Espaço (digamos, um mostrador) é por natureza idêntico à ‘passagem’ do tempo”.

Pela capacidade de unir temas tão abstratos a carnais, Nabokov exibe uma literatura estratégica e ardente: irredutível a simplicidades.

Ada ou ardor
Vladimir Nabokov
Trad: Jorio Dauster
Alfaguara
605 págs.
Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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