A terceira mão de Cortázar

No romance “Os prêmios”, um navio se transforma em labirinto perigoso, com um crime em curso, onde se configura um passeio existencial
O argentino Julio Cortázar, autor de “Os prêmios”
01/09/2024

Reler Os prêmios, de Julio Cortázar, é expandir-se. O autor não se limita a contar uma história; ele joga, experimenta, arquiteta. Seus personagens se reúnem num navio, inicialmente alegres por terem sido premiados numa loteria turística. O passeio que parte do rio de La Plata revela, porém, um percurso bem mais sociológico que geográfico: os debates e ações expõem tipos diversos de pessoas, e ao longo da história se intensifica um teor já conhecido em Cortázar. O suspense constrange e terrifica as pessoas, em escalada. É a mesma sensação que temos com os contos de Bestiário, por exemplo, principalmente A casa tomada.

Cortázar é sem dúvida um mestre do diálogo e da ironia — mas sua voz narrativa aqui se aprofunda no apelo visual. Temos um autor cromófilo, interessado numa profusão de cores, formas, geometrizações da narrativa e do próprio cenário, o navio, recortado à maneira de um quadro de Picasso. Muitas cenas do livro valem exatamente por isso que são: cenas, imagens que parecem sair das palavras e se materializar. Vejamos, por exemplo, esta, ainda no café London, antes de o navio zarpar:

Agora a mulher de saia vermelha e o homem de paletó xadrez se cruzavam a duas lajotas de distância no momento em que o dr. Restelli levava o copo à boca e a garota muito bonita (com certeza era) pegava um batom. Agora os dois transeuntes se davam as costas, o copo baixava lentamente e o batom escrevia a curva palavra de sempre.

Mais adiante, assim se anuncia a presença de um personagem que passa no corredor do barco, no instante em que a porta de uma cabina é aberta:

Justo no batente se delineou a imagem de perfil de Carlos López, que nesse momento levantava a perna direita para dar outro passo. Sua brusca aparição deu a Raúl a impressão de uma dessas fotos de um cavalo em movimento.

Há diversas outras soluções plásticas que Cortázar arrisca, como a técnica plongée para falar que um homem, observado de um quarto andar, é por um instante “uma espécie de ovo peludo que flutua no ar por cima de um travessão cinza-pérola ou azul, sustentado por uma misteriosa levitação que bota abaixo as geometrias puras, mas logo explicada por duas pernas ativas e pelas súbitas costas”. Um pouco mais adiante, conclui com explícita menção ao cubismo: “os anjos veem um mundo Cézanne: esferas, cones, cilindros”.

Dentre todas as personagens, Persio e Medrano compartilham a marca de alter ego do escritor. Medrano explora reflexões linguísticas em vários momentos do texto, e este é um ponto de proximidade inevitável com Cortázar. Persio, “interminável revisor de provas na casa Kraft, pensionista de vagos estabelecimentos do oeste da cidade, caminhante noctâmbulo”, é descrito como “baixinho e careca”, justo o antípoda de seu autor (mas fisicamente bem parecido com Picasso, cujo quadro é uma obsessão no livro). Claro, a aparência contrária não seria uma pista irônica, caso Persio desenvolvesse um discurso, digamos, comum. Mas no livro a sua voz assume um teor tão distinto que se abrem capítulos só para as suas digressões — variando entre poéticas e delirantes. É, portanto, um personagem crucial, que permite ao leitor acompanhar a travessia do próprio Cortázar em seu processo narrativo.

Além disso, Persio será o personagem que mais enfatiza a astúcia visual de Cortázar. O momento culminante acontece com a percepção cubista do mundo, a partir da estrutura do navio. O cenário se transforma em pintura; é contemplado não como realidade, mas como arte:

Curiosamente a visão da proa se oferece a ele de modo tão artificial como se tirasse da parede uma pintura e, segurando-a horizontalmente na palma das mãos, visse se distanciarem do primeiro plano as linhas e os volumes da parte superior, mudarem todas as relações pensadas verticalmente pelo artífice, organizarse outra ordem igualmente possível e aceitável. (…) Persio começa a entender a forma da proa e do convés, enxergaa cada vez melhor e ela lhe recorda alguma coisa, por exemplo um quadro cubista mas naturalmente com a tela deitada sobre a palma das mãos, olhando o que está embaixo como se estivesse em frente e o que está em cima como se fosse o que está atrás. É assim então que Persio vê formas irregulares a bombordo e a estibordo, mais adiante vagas sombras talvez azuladas como no violonista de Picasso.

O visual vira trampolim para o místico. Assim como a fragmentação dos espaços é ilusória, escondendo uma perfeita unidade, Persio constata que “a história humana é a triste resultante de que cada um olhe por sua conta”. O individualismo leva à divisão empobrecedora, e Persio, ao contrário, busca despertar em si mesmo um “sentimento cósmico”. Em determinado momento ele alcança a “certeza obscura de que existe um ponto central onde cada elemento discordante pode chegar a ser visto como um raio da roda”, a mesma roda que nos transporta, todos, dentro da mesma viagem.

Persio entrará numa dissociação cubista, vendo que “tudo é borda”, mas ao mesmo tempo os elementos se integram. O romance se transforma no universo inteiro, “um irresistível caleidoscópio de vocabulário, palavras como mastros, com maiúsculas que são velas furiosas”. É na sequência dessa vertigem de Persio que surge o apelo por uma terceira mão — um instrumento que não crie dualismos ou oposições laterais, mas unifique, ultrapasse maniqueísmos. A mão que “espera para agarrar o tempo e virá‐lo pelo avesso” é desejo e enigma, num território em que “as palavras seriam tochas de passagem”.

Cortázar sabe: “a terceira mão desfolharia na hora mais grave um primeiro relógio de eternidade, um encontro comparável ao golpe de um fogo de santelmo num lençol estendido para secar” — mas, apesar de seu caráter excepcional, ela não é um enxerto impossível. “Somos metafísicos muito antes de ser físicos”, diz Persio, e depois Medrano (o outro alter ego do autor) afirma, num teor igualmente holístico: “a relação é que não há nenhuma relação, porque tudo é uma e a mesma coisa”.

Nesse navio que se transforma em labirinto perigoso, com um crime em curso, vemos se configurar um passeio existencial. Cortázar convoca o leitor para que caia profundamente em seu livro, encontre os seus prêmios inauditos. Ele também será premiado com esse movimento: conforme bem declarou, “as coisas pesam mais se a gente as olha, oito mais oito são dezesseis e aquele que conta”. Nossa leitura cria, com Cortázar e sua obra, a fusão perfeita, a terceira mão que agarra o que antes se excluía.

O resultado é a eternidade.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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