A linguagem-natureza

A importância da ancestralidade está no centro de “Bruxas”, da mexicana Brenda Lozano
Brenda Lozano, autora de “Bruxas”
01/06/2024

Bruxas, de Brenda Lozano, é um livro de encantamentos. Narrado em capítulos que alternam as vozes das protagonistas, traz, dentro da perspectiva de Feliciana, uma dicção que retoma a de outra personagem memorável da literatura mexicana: a de Jesusa Palancares, eixo central em Hasta no verte Jesús mío, de Elena Poniatowska.

À semelhança de sua parenta ficcional, Feliciana é uma mulher do povo, extremamente conectada ao mundo dos mortos e à sabedoria da natureza. Mas, se no romance de Poniatowska a figura feminina funciona como uma espécie de símbolo histórico que ilustra as mudanças ao longo de meio século no México, no livro de Lozano a dimensão pessoal cresce em importância e, embora Feliciana atue numa camada política bem significativa, é seu lado humano que ganha relevo. Ela não é somente um personagem-ícone: parece muito viva e convincente, diante de nós.

A voz da outra protagonista pertence a Zoé, jornalista que procura Feliciana para saber mais sobre a morte de Paloma. Muxe (ou seja, pessoa não binária que se expressa no gênero feminino), Paloma nasceu com o nome de Gaspar, mas desde criança já se via enquanto mulher, a ponto de o seu avô Cosme dizer: “o menino anda como se estivesse soltando as penas”. A referência a um pássaro, inicialmente pejorativa, foi incorporada por Paloma através do nome, e da mesma forma ela também fazia questão de exibir a cicatriz que levava na sobrancelha, resultado de uma violência sofrida.

Paloma, que no início do livro já surge assassinada, vítima de um crime de ódio, tem a sua existência reconstituída pela narrativa de Feliciana, entrevistada por Zoé. Paralelamente, a história dessas outras mulheres vai sendo contada, com seus contrastes, mas igualmente com semelhanças profundas. O grande ponto de encontro se dá pela Linguagem. Embora Feliciana seja analfabeta, sabe ler no Livro que é a natureza. Curandeira que lida com ervas e cogumelos, herdou de uma tradição familiar o dom de enxergar os males que acometem as pessoas, e nas veladas — vigílias feitas pelos mazatecas — encontrou sua missão. Diz a personagem (originalmente, numa língua que “não é a do governo” e que, portanto, chega a nós em tradução da tradução):

Tem gente que tem medo de nós porque não entende o que fazemos. Eu não sou bruxa nem curandeira nem cartomante. Deus sabe disso, as ervas e os cogumelos me dão um poder maior de contemplação porque esse é o maior poder que podemos ter aqui as pessoas na Terra porque contemplando é como a gente pode curar ou consertar qualquer problema ou má vontade, e eu assim com as ervas e os cogumelos crianças posso contemplar o interior do doente, posso ver a origem de sua enfermidade física ou sua doença mais enterrada na alma e isso é uma coisa que os médicos sabidos não podem fazer, as pessoas têm medo de nós porque se perguntam Como ela faz isso, mas é algo que se faz desde nossos antepassados, é tão antigo quanto a Terra.

De modo similar, Zoé, pela palavra escrita, alcança uma atuação em benefício do mundo. Enquanto jornalista, desenvolve a escuta, a contemplação que leva ao entendimento — e, assim, a uma espécie de cura.

Para além dos aspectos profissionais, as duas mulheres se aproximam por reflexos de uma condição intrínseca na família. Elas vêm de realidades sociais, econômicas e culturais bem diversas, mas compartilham de uma experiência comum: a do convívio com uma irmã. Nesse ponto, preciso admitir o susto que tive ao perceber como Bruxas, lançado ao mesmo tempo que meu romance Um prego no espelho, e pela mesma editora, comportava-se como um livro-irmão dele. Pois minha história também se concentra no radar de duas irmãs, Thalia e Salete, distintas como a rocha e o cristal, mas no fundo essenciais uma à outra, da forma como se lê em Lozano:

Eu não seria Feliciana se não tivesse minha irmã Francisca, assim como você não seria quem é sem sua irmã Leandra. As irmãs são o que não temos, elas são o que não somos e nós somos o que elas não são.

A importância da ancestralidade ressoa de modo equivalente nos dois livros. Um prego no espelho traz a premissa de que a vida de alguém pode ser uma repetição disfarçada do destino de seus antepassados — e em Bruxas se pode ler uma passagem como esta:

Embora a gente não entenda por que o galho sai da árvore como sai, com a gente acontece o mesmo, porque o sangue não dá explicações, você também tem o seu filho Félix, eles herdam tudo, mesmo que não conheçam seus mortos.

Talvez seja efeito de sinastria, ou quem sabe um feitiço literário verdadeiro: não sei como explicar, mas o fato é que em Bruxas existe um trecho em que uma doença é revelada por influência familiar (“e vi que o menino se sentia culpado, e desmaiava para compensar”) exatamente com o sintoma que acomete a minha protagonista Thalia.

As confluências podem ser todas justificadas por um aspecto comum, que atingiu tanto a mim quanto a Brenda Lozano, na época de criação de nossos livros? Sim, é possível que tudo venha do fato de sermos contempladoras, “porque o ar, os montes, as nuvens, as flores, as ervas, tudo o que vemos nos traz mensagens, a natureza traz a Linguagem, é preciso só ouvir”. De qualquer modo, saio dessa leitura extremamente comovida, como se essa autora-irmã me dissesse, de mãos dadas comigo:

Conte sua história, conte a minha porque não são duas histórias a sua e a minha (…). Diga seu nome, diga o meu e diga os dois, seu nome e o meu nome são o mesmo se no alto no baixo somos todos iguais, não importa o nome que diga, o seu ou o meu, porque somos todos filhos da Linguagem, todos viemos da Linguagem, e se morrermos voltamos a ela.

Bruxas
Brenda Lozano
Trad.: Silvia Massimini Felix
Companhia das Letras
224 págs.
Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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