Já faz algum tempo, escrevi um longo ensaio sobre os contos de Lygia Fagundes Telles. Eu o intitulei em ressonância com um livro da autora, A disciplina do amor, composto por fragmentos biográficos, literários e ensaísticos. O ensaio passou por algumas vicissitudes, até que — cedendo ao apelo primordial de todo texto, que é o de ser lido — eu decidisse desmembrá-lo para publicá-lo aqui no Rascunho. Ele não segue necessariamente o roteiro original, mas continua firme na intenção de homenagear Lygia Fagundes Telles, agora ao longo de algumas edições nesta coluna. Usaremos, portanto, como trampolim o livro citado, que em diversas passagens traz uma reflexão sobre o rigor como oposição ao extravasamento emocional. O compromisso social de manter o controle é visto pela escritora como uma espécie de covardia, diante da grande coragem que é expor-se em fragilidades:
(…) coragem da cólera, da tristeza — ô Deus! — até nos enterros as pessoas tão contidas, tão exemplares. Se controlando para não chorar alto porque se o choro fica forte, já vem alguém com a pílula, a injeção, o analista: fechar as portas, as janelas, os buracos. Até os anjinhos de Giotto se desesperaram diante de Jesus crucificado, lá estão eles no céu, arrancando os cabelos, os olhos inundados de lágrimas. Mas o homem tem que ficar no nível, sem transbordar.
A disciplina de uma dor que se nega ou reprime em nome das aparências é ponto marcante em várias personagens de Lygia. Seguimos este fio condutor para a análise dos contos desta autora, observando que a definição de dor pode englobar inúmeras situações trágicas, relacionadas a perdas, frustrações, remorsos ou loucura.
Para começar numa grade cronológica, partiremos do livro O jardim selvagem, publicado pela primeira vez em 1965. A maioria dos contos desta obra “migrou” para outros volumes de Lygia, coletâneas ou seletas de textos impressos ao longo dos anos. E vários contos de outros livros tiveram trajetória semelhante, após terem se esgotado os títulos em que foram publicados pela primeira vez. Assim, visto que a própria autora promove uma circulação de seus escritos, aos poucos também nos sentiremos à vontade para encaminhar a análise dos contos de maneira menos temporal, aprofundando as associações entre as obras. Por enquanto, porém, comecemos de maneira disciplinada.
O primeiro texto em que constatamos a pertinência de nosso foco de estudo é Gaby, com um personagem pintor mergulhado em narrativa fragmentada por retalhos de memórias. O artista vive no constante conflito de deixar-se ou não aprisionar por uma mulher mais velha, que pode suprir suas necessidades financeiras. O que nos interessa nesta história, porém, é sobretudo Mariana, que demonstra um rigor espartano de produtividade, enquanto Gabriel, o pintor infantilizado já desde o apelido Gaby, dado pela mãe, adota uma concepção meio budista para se entregar ao desânimo: “(…) no dia em que os homens descobrirem que melhor do que viver é não viver. Melhor do que pintar, deixar a tela em branco. O papel em branco. A perfeição”.
Neste conto, as figuras femininas são fortes e representativas de atitudes que encontramos em outras histórias de Lygia: há a esposa de Gaby, velha e manipuladora; há Mariana, a namorada jovem, enérgica e impositiva — e há a mãe de Gaby, tão doce em seus carinhos, mas dissimulada, traidora do marido.
O entra-e-sai dessa mãe cheia de compromissos é visto como um indício de mau comportamento: “O pai devia saber que mulheres assim agitadas não podem mesmo ser fiéis”. Dessa forma, o critério de uma aparência respeitável, junto com uma atitude controlada, era uma espécie de exigência imposta à mulher, se não quisesse ficar “falada”. Em vários textos de Lygia, encontramos a ressonância desse compromisso, principalmente representada por uma personagem mais velha, que se torna opressora ou fiscalizadora da juventude. Em Gaby, entretanto, a esposa do protagonista aparece como um reflexo de sua mãe: é sensual e luxuriosa, deixando-o mesmo aborrecido. A jovem disciplinada identifica-se com a figura correta, “de princípios”; entretanto, embora Gaby a admire, está casado com a velha que lhe lembra a mãe.
Em outro conto deste volume, A ceia, há também uma mulher com idade para ser mãe de seu companheiro: é justamente esta a impressão que tem o garçom a servi-los, num restaurante quase deserto. O encontro é uma tentativa de “despedida mais digna”. Alice, após 15 anos de convívio com Eduardo, foi abandonada, e agora o antigo parceiro está de casamento marcado com uma jovem, Olívia. Inconformada com a separação, Alice embriagou-se e fez escândalos nas ocasiões em que tentaram conversar. Dessa vez, não será diferente: embora ela tente manter-se calma, logo chora e se humilha, diante de Eduardo. Alice é outra mulher para quem a disciplina das emoções existe como pressão teórica, mas ainda muito distante, no exercício prático.
Bem representativa da separação é a imagem que temos quando o casal se afasta um pouco da mesa do restaurante e vê: “No meio do jardim decadente, uma fonte extinta”. Em momento posterior, teremos a oportunidade de analisar como a simbologia da água está associada à vida, ao fluxo da juventude e ao sexo; da mesma forma, jardins, bosques e demais espaços com densa vegetação, na escrita de Lygia, adquirem a conotação de misticismo e, em alguns casos, anúncio de morte. A frase citada, então, é uma dupla ilustração do fim do relacionamento entre Eduardo e Alice.
Separação inconformada ainda é o tema de Venha ver o pôr do sol, conto de suspense que alterna os papéis: dessa vez é o homem, Ricardo, quem se vê preterido pela companheira, Raquel. Em determinado momento, sua expressão de apertar os olhos, num indício de tensão vingativa, é exatamente a mesma da personagem Alice, em A ceia. Ricardo, porém, é calculista, um verdadeiro disciplinado a esconder as emoções, o desejo agressivo. Todo o seu rigor e planejamento o fazem ter êxito no plano macabro contra a ex-namorada.
No livro A estrutura da bolha de sabão, também achamos uma história com uma cena de encontro muito parecida com a de Venha ver o pôr do sol — embora neste texto de agora, A testemunha, o episódio aconteça entre dois amigos, Miguel e Rolf, que escondem um ressentimento do passado, uma emoção que vai se tornar o elemento motivador de um assassinato frio. O diálogo abaixo, pontuado por expectativas quase infantis, é muito parecido ao de Raquel e Ricardo, em Venha ver o pôr do sol:
Enveredaram por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa na altura da água. Rolf parou de assobiar.
— Ainda está longe?
— O quê?
— O restaurante, rapaz.
— Ah, fica logo depois da ponte — disse Miguel. E inclinou-se para amarrar o cordão do sapato. — Conheço tanto esse rio, eu morava aqui perto quando criança. (…)
Rolf abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido. Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado, se engasgando.
Aqui também, o assassinato é uma explosão do personagem que até então permanecia controlado, sufocando os sentimentos na disciplina da dor. E igualmente ocorre uma reviravolta de vermos o personagem que inicialmente era mais frágil, ou representava a vítima, tornar-se superior e forte por seu gesto de vingança.
Na mesma linha de companhias ameaçadoras, encontramos Daniela, a misteriosa esposa de Ed, no conto O jardim selvagem. Sempre com a mão direita inexplicavelmente metida numa luva, Daniela atira no cão da chácara sob o pretexto de que ele estaria doente e “a doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o instrumento para não tocar desafinado”. É assim, com esse rigor associado a uma metáfora musical, que Daniela se volta friamente contra qualquer tipo de existência imperfeita, o que apavora a pequena narradora desta história, ao saber que o seu tio Ed adoecera: “Quando Conceição veio me anunciar que ele tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto que levara quando me disseram que estava doente fora um susto maior ainda”.
Até aqui, as análises feitas já apontam para um traçado do tema da disciplina como um elemento de opressão comportamental, associado à frieza, ao assassínio, ou mesmo à simples frustração de uma vida regulada por regras. As personagens que fogem a esse perfil, entregando-se à sinceridade expressa de suas emoções, podem ser vistas como loucas em alguns textos, mas certamente são mais autênticas e menos “covardes”, como frisou Lygia, no trecho que citamos no início deste ensaio.