Uma festa para a inteligência

A ficção científica responde às leis da criação literária e artística
Ilustração: Teo Adorno
30/09/2019

1.
O senso comum acredita que a principal função da ficção científica é prever, com anos ou até décadas e séculos de antecedência, as invenções e o estilo de vida do futuro. Mas essa nunca foi sua função mais importante. A ficção científica é, antes de tudo, ficção. Ela responde primeiro às leis da criação literária e artística, e sua força vem da qualidade estética de suas obras-primas.

O maior mérito de uma obra literária é ser, acima de tudo, uma festa para a inteligência.

Mas também é verdade que a ficção científica é o único gênero literário e artístico habilitado a prever as invenções e o estilo de vida do futuro. E não existem tecnologias e eventos contemporâneos — dos computadores aos satélites, do celular à internet, do alimento transgênico ao aquecimento global, do carro autônomo aos robôs sexuais, da neurocirurgia às espaçonaves tripuladas — que já não tenham aparecido muitas décadas atrás em contos, novelas, romances, peças de teatro, filmes e séries de ficção científica.

Os autores de FC preveem o futuro extrapolando o momento presente. Não o dia a dia do cidadão comum, mas o momento presente dos avançados laboratórios e centros de pesquisa. Não existe autor de FC que não se interesse pelo nível mais alto do desenvolvimento social, político, científico e tecnológico de sua época. Mas é claro que isso não dá a ninguém um infalível poder de vidência.

O aspecto divertido do método premonitório dos autores de FC é o exagero descontrolado, a sequência sem fim de tentativas e erros. Esses autores atiram pra todos os lados, sem descanso. Então, como são centenas de autores e milhares de tentativas anuais, cedo ou tarde alguns acabam acertando um alvo interessante. Assim surgem as previsões que tempos depois acabarão se confirmando.

A ficção científica desdobra-se em inúmeros ramos. Atualmente, o ramo mais prestigiado é o da distopia tecnopolítica, com histórias ambientadas em um Estado futuro totalitário, em que há um opressivo controle da sociedade. O interesse por esse subgênero da FC se deve, obviamente, à ascensão dos partidos de extrema direita nas principais democracias ocidentais. Mas confesso que, depois de ler e assistir a dúzias de distopias contemporâneas, após ter estudado a fundo as distopias clássicas, já estou começando a enjoar desse subgênero.

Por mais que digam que os Estados Unidos ou o Brasil já estão vivendo uma distopia tecnopolítica, obviamente isso é só força de expressão. O que acontece é que os norte-americanos e os brasileiros estamos no limiar de uma possível distopia. Ainda não cruzamos a fronteira. Ainda dá tempo de recuar. E as ficções distópicas vieram à luz justamente pra nos alertar contra esse pesadelo.

Um fato triste e notório é que a ficção científica sempre foi um campo masculino, pra não dizer machista. A proporção entre autores e autoras, em todas as grandes fases da FC, sempre foi desigual. Mas a boa notícia é que isso está mudando. O número de autoras talentosas está aumentando visivelmente até no Brasil. E a FC também está deixando de ser uma especialidade anglófona. Já há grandes obras de FC escritas por brasileiros, portugueses, argentinos, espanhóis, franceses, alemães, indianos, chineses…

Os autores contemporâneos estão fazendo previsões inquietantes: drogas da inteligência, engenharia genética, clonagem humana, singularidade tecnológica, nanorrobôs medicinais, longevidade ilimitada, casas e cidades autônomas, conexão cérebro-computador, apocalipse ecológico, colapso populacional, contato com uma civilização alienígena… A dúvida não é mais se esses eventos e inovações acontecerão ou não. A dúvida é quando acontecerão.

2.
Para seu deleite, eis uma breve lista de tecnologias que a FC previu com sucesso:

Nos romances Da Terra à Lua (1865) e Vinte mil léguas submarinas (1870) Jules Verne previu, respectivamente, a viagem tripulada à Lua e a invenção do submarino e do escafandro autônomo.

No romance A guerra dos mundos (1898), H. G. Wells previu a invenção do tanque de guerra. Wells também previu a invenção da bomba atômica, no romance The world set free (1914).

Na peça A fábrica de robôs (1920), Karel Tchápek previu a invenção de pessoas sintéticas (androides e ginoides).

No romance Admirável mundo novo (1932), Aldous Huxley previu o desenvolvimento da engenharia genética, a invenção dos antidepressivos e seu uso em escala global.

Na série de contos sobre robôs, iniciada em 1940, Isaac Asimov previu todos os dilemas possíveis que humanos e máquinas inteligentes enfrentarão no futuro.

No romance 1984 (publicado em 1949), George Orwell previu a vigilância constante e o controle social, do Estado totalitário, por meio de câmeras de segurança e da disseminação de notícias falsas.

No conto Virão chuvas suaves (1950), Ray Bradbury previu a invenção da casa automatizada.

No romance Tropas estelares (1959), Robert A. Heinlein previu o exoesqueleto e, no romance Um estranho numa terra estranha (1961), inventou o colchão d’água.

Os roteiristas da série Star trek (1966), criada por Gene Roddenberry, previram a invenção dos celulares.

No filme 2001: uma odisseia no espaço (1968), posteriormente transformado em romance, Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick previram a invenção do tablet. Antes disso Clarke já havia previsto a realidade virtual no romance A cidade e as estrelas (1956).

No romance Ciborgue (1972), Martin Caidin previu a invenção das próteses eletrônicas e o surgimento do primeiro humano cibernético.

No romance O Guia do Mochileiro das Galáxias (1979), Douglas Adams previu a invenção do tradutor universal.

No romance Neuromancer (1984), William Gibson previu a invenção da internet e o surgimento dos piratas de dados (hackers).

No romance O jogo do exterminador (1985), Orson Scott Card previu a invenção dos drones.

O filme Total recall (1990), dirigido por Paul Verhoeven, previu a invenção do automóvel autônomo.

O filme Minority report (2002), de Steven Spielberg, previu a invenção da propaganda digital programática.

3.
A seguir, uma relação de tecnologias que a ficção científica previu, mas ainda não foram inventadas.

Porque contrariam as leis da física:

Máquina do tempo (A máquina do tempo, 1895, H. G. Wells — O fim da eternidade, 1955, Isaac Asimov)

Teletransporte (Tiger! Tiger!, 1956, Alfred Bester — Star trek, 1966)

Eventos que ainda não ocorreram mas certamente ocorrerão, mais cedo ou mais tarde:

Colonização de Marte (As crônicas marcianas, 1950, Ray Bradbury)

Civilização alienígena (A guerra dos mundos, 1898, H. G. Wells)

Tecnologias muito avançadas atualmente em fase de pesquisa:

Drogas da inteligência (Sem limites, 2011, Neil Burger — Lucy, 2014, Luc Besson — em Flores para Algernon, conto 1959, romance 1966, Daniel Keyes, o procedimento é uma cirurgia no cérebro)

Upload mental (A cidade e as estrelas, 1956, Arthur C. Clarke)

Longevidade (A cidade e as estrelas, 1956, Arthur C. Clarke)

Capa da invisibilidade (Predador, 1987, de John McTiernan — Ghost in the shell, 1989, Masamune Shirow)

Telepatia (The demolished man, 1953, Alfred Bester — O fabricante de gorros, 1955, e Ubik, 1969, Philip K. Dick)

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho