Um defeito de fabricação?

O romance “Um mal-estar fundamental”, de Álamo Enfant, segue a tradição subversiva, contra a humanidade
Ilustração: Eduardo Souza
01/10/2023

1.
No dia 10 de agosto deste ano aterrissou em casa uma criatura misteriosa, com um enorme corpo de leão, asas de águia e uma bizarra cabeça humana. Basicamente uma esfinge. A criatura pousou já ocupando todo o espaço doméstico: sala, quartos, varanda, banheiros. Seu primeiro murmúrio, no pé do ouvido, foi um título eloquente: “Aqui está, pequeno homem, Um mal-estar fundamental. Contemple sua amplidão e se desespere”.

2.
Dias antes eu havia recebido um release da Kotter Editorial, divulgando o primeiro romance de um autor chamado Álamo Enfant. Esse release quase se perdeu entre os outros e-mails e por pouco não foi descartado. Um detalhe capturou minha atenção. Na primeira página do romance, oferecida como isca, havia uma infestação de vírgulas. Isso foi o suficiente.

3.
Lembrei de um miniconto do Décio Pignatari intitulado Teleros, incluído na coletânea O rosto da memória, de 1986. Procurei e encontrei no sítio da Kotter uma amostra maior do romance, e constarei que a infestação de vírgulas continuava por muitas e muitas páginas. Era uma pandemia. Na mesma semana comentei sobre esse insólito lançamento com os alunos do minicurso Mundo-vertigem: delírios da linguagem. Não podíamos deixar passar mais um ótimo exemplo do que eu batizara provisoriamente de Filtro Teleros: vírgulas separando todas as palavras de um texto. O uso desse filtro criativo — um dos mais raros na literatura brasuca —, exasperando o leitor logo nas primeiras páginas, garantiu ao romance Um mal-estar fundamental um lugar na muy essencyal & dysparatada byblioteka do LunaLaby [Laboratöryo de Lyteratura Lunätyka].

4.
O próximo passo seria obviamente examinar um exemplar do romance, pra conseguir mais detalhes. Tempos depois aterrissava em casa uma criatura misteriosa, com um enorme corpo de leão, asas de águia e uma bizarra cabeça humana. Basicamente uma esfinge.

5.
Examinando os órgãos externos e internos da assombrosa esfinge… Seu corpo inteiro — incluindo a folha de guarda, a folha de rosto, a página da dedicatória, a página do colofão e as outras — se estende por mais de mil e quatrocentas páginas. A narrativa propriamente dita é um longo e macilento parágrafo de mil, trezentas e trinta e quatro páginas. Sobrevoando esse Pantagruel textual percebo que setenta por cento ou mais do seu corpanzil estão infestados de vírgulas parasitas. Ousadia análoga a de James Joyce, que mais de um século atrás — a burguesia ainda não havia sido vacinada contra essas dissonantes excentricidades — estendeu por sessenta páginas o monólogo de Molly Bloom, subtraindo toda a pontuação de um longo e digressivo parágrafo mental.

6.
No plano do enredo temos uma sucessão de personagens, ações e situações perversas, sórdidas, aberrantes, medonhas, escatológicas… Reunir o pior da condição humana — denunciar nossos vícios mais selvagens num tribunal rigoroso — foi certamente a principal intenção do autor. Não é preciso avançar muito na leitura do romance pra constatar que Um mal-estar fundamental pertence à pequena família de obras perigosas — demoníacas — sobre a qual já tratei nesta coluna. (Procurem, na edição de julho de 2017, o artigo Trilogia da perdição. A peçonhenta família à qual pertencem Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, Os cantos de Maldoror, do Conde de Lautréamont, e Almoço nu, de William S. Burroughs, oferece ao leitor toneladas da mais repugnante, da mais doentia manifestação do Mal — estético, físico e moral.)

7.
O romance de Álamo Enfant também segue essa tradição subversiva, contra a humanidade. Também arrasta da sombra pra luz a náusea atávica do sapiens: nosso mal-estar na vida, no tragicômico nonsense do existir. Isso no plano do enredo.

8.
No plano da linguagem, multidimensional, a subversão é mais potente. Mais rara e radical. Por que mais rara? Fato estatístico: na literatura brasuca há tão poucos livros subvertendo a linguagem literária… Por que isso? Ninguém sabe. É a tradição da inércia. A força forte do hábito. O que sabemos é que os leitores até suportam — uns poucos decadentistas até exigem — certas estripulias macabras no enredo, desde que não mexam demais na sacrossanta linguagem. Não! Nada de dadaísmos despudorados (a turba deve estar se referindo a algumas páginas do Necrológio, do Victor Giudice). Nada de barroquismos concretistas (a turba deve estar se referindo às solitárias Galáxias, do Haroldo de Campos). É isso. Um discurso indireto livre ou um monólogo interior são até aceitáveis, desde que bem comportados. Cachorrinhos de madame.

9.
Mas Álamo Enfant resolveu aparecer com um chacal virtual. Uma suçuarana. Vocês sabem, uma dessas obscuras criaturas da floresta do espírito humano, um ser selvagem que já chega intimidando a audiência supostamente civilizada. Suas garras são vírgulas, seus dentes são vírgulas. A criatura cravou em nossas gordurosas retinas centenas de milhares de vírgulas.

10.
Somente os leitores flácidos e despreparados estão gritando, indignados: pooor queee, poooooor queeeeeee?! Nós, leitores acostumados com a musculação da academia de leitura literária, preparadíssimos, estamos tirando de letra. (Estou lendo quatro páginas por dia. Esse é o meu ritmo, é assim que eu corro maratonas. Sem afobação.)

11.
Pensando nos leitores flácidos e despreparados: qual é o efeito mais evidente, mais visível, que um vasto monólogo interior constituído de um único parágrafo oceânico cravejado de vírgulas lhes causa? Naturalmente o efeito de defeito, de máquina quebrada. (Quando Édouard Dujardin inventou o monólogo interior, no final do século dezenove, o mecanismo de Os loureiros estão cortados surgiu limpo, simpático e elegante. Muito diferente da antipática deselegância suja do celebrado monólogo de Molly Bloom, tão elogiado pelos franceses da época, que ironicamente desconheciam o pioneirismo do compatriota.)

12.
O monólogo interior de Um mal-estar fundamental também é do tipo sujo, antipático e deselegante, descambando para a cacofonia do fluxo de consciência em alguns momentos, mas sem negligenciar a disciplina e o método. Sim, querido Polônio, há método nessa loucura. Os leitores acostumados com a musculação da academia de leitura literária sabem que não há defeito algum na prosa de Álamo Enfant. Sabem que o tal efeito de defeito se refere somente à humanidade. Somos criaturas profundamente defeituosas, profundamente violentas, e nossa imperfeição social está na receita biológica da vida, no mapa da existência — ela é genética.

13.
Repito: livre-arbítrio é uma ilusão, a violência humana é genética. Não somos filhos da estética ou da razão moral, mas do estupro. Da carnificina. (“Monumentos da cultura” sempre foi igual a “monumentos da barbárie”.)

14.
Já passei da página de número cem. Continuo lendo quatro páginas por dia. Esse é o meu ritmo, é assim que eu corro maratonas. Evitando estourar os joelhos.

15.
Preciso confessar que a expressão um defeito de fabricação (outra legítima alternativa de título para o cartapácio) eu retirei do próprio romance… Na página cinquenta e dois, num dos raríssimos trechos intocados pela praga das vírgulas, o narrador fala de uma granada que explodiu na mão de um tenente-professor, durante a aula sobre explosivos. “Benjamin estava explicando detalhadamente como se deve manusear a granada, quando, sem que ele pudesse evitar, o pino da granada soltou, um defeito de fabricação, estava pronta para explodir, ele só tinha alguns segundos, já tinha ouvido o clique…” Nessa hora o tenente sentiu o ímpeto de jogar o artefato pra frente, ou pela janela, mas aí a explosão mataria ou aleijaria muitos jovens cadetes.

Um mal-estar fundamental
Álamo Enfant
Kotter
1.448 págs.
Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho