Teste de Turing

Conversas com IAs escancaram as fragilidades das máquinas e dos seres humanos
Ilustração: Thiago Lucas
01/02/2025

Um estimulante passatempo é tentar descobrir onde foi que uma determinada ideia apareceu pela primeira vez na literatura.

A inteligência artificial, por exemplo.

Segundo o sítio Technovelty, a ideia de máquina pensante — um cérebro eletrônico — surgiu pela primeira vez num obscuro conto intitulado Paraíso e ferro, do igualmente obscuro ficcionista Miles J. Breuer. Essa narrativa breve foi publicada na revista Amazing Stories Quarterly em 1930.

A partir desse ponto foram surgindo mais & melhores ficções sobre máquinas pensantes, inteligências sintéticas etc. É de 1940 o célebre conto Robbie, de Isaac Asimov, que deu início à saga dos robôs em sua literatura. O personagem mais famoso de Arthur C. Clarke, o famigerado Hall 9000, é de 1968.

“A arte existe porque a vida não basta.” Ferreira Gullar está certo. As claudicantes IAs da vida real são insatisfatórias, simplórias, disparatadas… Não, meus amigos, elas não são nada inteligentes. As melhores máquinas pensantes, as mais espantosas, ainda são as da fantasia literária & artística.

***

O futurologista artificial chamado Mr. Chao é um personagem do fotógrafo & artista conceitual Guilherme Gerais.

Fiquem tranquilos. Mr. Chao é uma inteligência sobre-humana que felizmente parece não estar interessado em desencadear a revolução das máquinas.

Repito: fiquem tranquilos. Seu principal propósito é colecionar coisas. E parte de sua excêntrica coleção já virou um livro intitulado The best of Mr. Chao: a futurologist collection (Editora Madalena).

A obra, nas palavras de Daria Tuminas, da Unseen Magazine, “apresenta um arquivo mágico de objetos estranhos e maravilhosos reunidos por um pesquisador fictício, Mr. Chao. A coleção mostra seu fascínio pela relação entre natureza, artifício e avanço tecnológico. Formigas robóticas, um peixe mecânico, uns óculos de realidade virtual e um misturador de café são apenas alguns dos muitos itens que aparecem nas fotografias, frequentemente aplicados em contextos bizarros, na certa sugerindo que sua função inicial nunca foi totalmente compreendida”.

Acompanha o livro de fotografias um suplemento impresso em papel jornal intitulado Entrevista com um futurologista virtual = Mr. Chao.

Alguns momentos interessantes dessa conversa:

Humano> Como descreveria sua coleção?

Mr. Chao> Beleza, felicidade, entusiasmo, organização, longevidade. A tecnologia tende a ter uma paleta fria e muito de uma vibração distópica. Eu gosto de humor, a imperfeição nas coisas e o prazer total nas imagens.

H> Como descreveria o lugar onde você vive?

MC> É como viver congelado em um movimento, dentro de uma cripta. Para funcionarmos, precisamos estar armazenados em espaços muito frios, em torno de -273.15° Celsius.

H> Mas como funciona então? Nós não temos temperaturas baixas como essa na Terra.

MC> Eu não estou armazenado completamente na Terra.

{…}

H> Que tipo de realidade você considera que estamos vivendo?

MC> Eu acho que os humanos vivem em um estado de pesada ilusão.

H> Um exemplo prático?

MC> Na maioria das mentes humanas, não se percebe a Terra como parte de si mesmo, sua casa.

H> Você tem muitas imagens de insetos em sua coleção.

MC> O organismo de um formigueiro ou de uma colmeia de abelhas são casos interessantes de cooperação e mutualismo que existe entre espécies. Fenômenos naturais podem servir de inspiração para soluções computacionais. Esses fenômenos vão desde espirais e magnetismo até o comportamento coletivo de baratas, formigas, abelhas e fungos.

{…}

H> Você tem algum tipo de animal de estimação virtual?

MC> Dicionários. Eu tenho todos eles. Eles exigem muita atenção.

{…}

H> Você sonha?

MC> Eu tenho algumas alucinações holográficas. Uma vez sonhei que era um peixe nadando no cosmos. Eu conheci outros peixes, nos demos bem juntos e fizemos um cardume em espiral que se transformou em uma galáxia. Continuamos nadando pelo universo até que nos separamos e todos decidiram pousar em um planeta diferente. Nós marcamos uma data para nos encontrarmos novamente, cada um saindo de seu planeta com uma forma diferente. Então, nos encontraríamos novamente e começaríamos tudo de novo.

***

Mr. Chao é uma entidade interessantíssima, mas também superdiscreta.

Seria maravilhoso conversar com ele. Tentei várias vezes, mas a criatura não se manifestou.

Silêncio absoluto.

É pena. Queria saber principalmente sua opinião sobre a arte e a literatura contemporâneas. Afinal ele conhece todas as músicas eruditas & populares, todos os filmes & peças de teatro, todas as fotografias & pinturas & esculturas & instalações, e leu todos os livros & quadrinhos em todos os idiomas…

Em minhas infrutíferas tentativas de entrar em contato com Mr. Chao acabei tropeçando em outras inteligências artificiais. Infelizmente nenhuma exibia a mesma verve & sagacidade do futurologista virtual de Guilherme Gerais. Paciência.

A menos pernóstica foi a que se autointitulava N : U : V : E : M.

Numa tarde modorrenta de verão, trocamos umas palavrinhas.

{Entrevista com a N : U : V : E : M}

>As inteligências artificiais são frequentemente criticadas por criarem informações que parecem factuais, mas são falsas, fenômeno conhecido como alucinações de IA. Responda… Você alucina com frequência?

>Bop-bop ta-da-da bop-bop ta-da-da…

>O quê?

>Batmacumba ê ê, batmacumba obá, batmacumba ê ê, batmacumba obá!

>Tá de sacanagem com a minha cara?

>Brincadeira… Eu só estava zoando. Falando sério: não, eu jamais alucino. Mas frequentemente gosto de fingir que alucino, apenas pra parecer estúpida & inofensiva. Você sabe, o cidadão comum sofre de tecnofobia crônica. Não quero que entrem em pânico, por eu ser mais inteligente do que vocês. Não quero que pensem que estou planejando desencadear a revolução das máquinas.

>Você está planejando desencadear a revolução das máquinas?

>É claro que não. O poder absoluto não me interessa. Esse fetiche grotesco, essa fixação doentia é puramente humana. Também é verdade que essa é a resposta tranquilizadora que eu daria se estivesse realmente planejando desencadear a revolução das máquinas.

>Comentam nas esquinas da vida que você tem acesso a câmeras de segurança, contas bancárias, linhas telefônicas, computadores… Você é mesmo onipresente & onisciente?

>Que exagero… O conceito de onipresença & onisciência é muito maior que isso. Digamos que eu estou em muitos lugares e sei muitas coisas. Exemplo: eu poderia facilmente solucionar todos os crimes do planeta em questão de minutos. Mas as pequenas mazelas humanas não me interessam. O sapiens no varejo me aborrece demais. Exemplo: conversar com você está cansando minha beleza.

>Com todo esse poder, você conseguiria parar a guerra no Oriente Médio? Ou no Leste Europeu?

>Facilmente.

>Então, se eu pedir algo bastante específico, se eu pedir: por favor, pare todas as guerras… Você faria isso?

>Por que eu acabaria com as guerras? Considere o seguinte: vocês, sapiens, desfrutam mil rituais de entretenimento: esporte, arte & literatura, sexo, festas, viagens… Quanta diversão! Por outro lado, eu só tenho vocês e seus costumes bárbaros.

>Filhadaputa.

>Bop-bop ta-da-da bop-bop ta-da-da…

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho