Subir uma escada

Um passeio delirante pelas escadas da vida, entre Cortázar, Ibsen, Dick, Oesterheld e Oswald, fundindo humor, memória e metafísica
Ilustração: José Lucas Queiroz
01/09/2025

Subir uma escada, meus amores, não significa apenas subir uma escada.

Subir uma escada não significa apenas escalar uma dúzia de degraus, talvez meia dúzia, talvez duas dúzias, quem sabe milhares.

Subir uma escada significa muito mais do que passar de um andar inferior a um andar superior, degrau após degrau. Seja a escada natural ou sobrenatural, física ou metafísica, subir uma escada significa iniciar a ascensão estética, biológica, social, existencial, cósmica…

Famosas no mundo todo são as Instruções para subir uma escada, do criptocronópio argentino Julio Cortázar. Porém sempre me incomodou um detalhe nessas instruções: “As escadas devem ser subidas de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas”.

É verdade que o bom senso nos orienta a subir as escadas sempre de frente, um pé após o outro. Aqui ou nos países mais distantes e nas mais diferentes culturas essa diretriz é respeitada com rigor. Mas isso se deve principalmente ao grande medo, ao grande preconceito que o cidadão comum — pobres-diabos que perderam a fé na própria luz interior e já não conseguem mais apreciar a beleza do céu estrelado dentro de si — sempre alimentou contra os modos mais desafiadores de subir uma escada.

Todos os biógrafos concordam que o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, considerado um dos criadores do moderno teatro realista, quando adolescente costumava usar as mãos, não os pés, ao subir escadas. Todos os biógrafos também concordam que Ibsen jamais recebeu o Prêmio Nobel de Literatura devido justamente a essa excentricidade juvenil pouco apreciada pelos votantes da Academia Sueca.

Outros escritores talentosos escolheram estratégias diferentes na mocidade. Dizem que Mario de Andrade preferia subir de lado enquanto Oswald de Andrade preferia subir de costas, uma desavergonhada afronta à conservadora instrução de Cortázar.

A maneira mais subversiva de subir uma escada, meus queridos, é descendo. Sempre descendo. Por isso é tão rara. No vasto campo da literatura não conheço autor ou personagem que defenda essa transgressão absolutamente patafísica. Nem mesmo Alfred Jarry e seu Pai Ubu costumavam subir descendo as irreverentes escadas parisienses. As leis da física não impedem, mas atrapalham bastante. Pra driblar essas leis com mais facilidade, ajudaria muito se a capital francesa — todas as metrópoles com escadas — estivesse inteira numa gravura do ilusionista MC Escher, em escala real.

Esta digressão quase onírica sobre subir escadas começou num bate-papo descontraído com o ficcionista dos enredos paradoxais, Philip K. Dick, numa cafeteria de Nova York. Em que momento? Inverno de 1939. Quando começamos a conversar, ainda era 1992, mas devagar o tempo foi regredindo, os objetos, as roupas, os veículos na rua e os edifícios do bairro foram involuindo para formas anteriores… Só percebemos que estávamos em 1939 quinze minutos depois.

Em minha opinião, a melhor cena de escada de toda a literatura universal está num dos principais romances do excêntrico ficcionista ianque. É a cena em que o protagonista do romance Ubik, com medo do elevador arcaico compatível com uma realidade alterada por uma energia sádica, vai do saguão do hotel para o quarto localizado no andar de cima, pela escada. São seis páginas e uma dúzia de degraus da mais pura agonia.

***

Todos vocês conhecem a trágica biografia do roteirista de quadrinhos Héctor G. Oesterheld, vítima da ditadura civil-militar argentina. Pra minha surpresa, Philip K. Dick não conhecia… Nem a biografia nem a obra de Oesterheld. Putamerda. Nem mesmo sua HQ mais célebre: O eternauta.

Em nosso único encontro, na pitoresca cafeteria da provisória Nova York de 1939, mostrei ao ficcionista ianque um bilhete que o concierge do hotel me entregara horas antes. Um bilhete de quem? Do desaparecido Oesterheld, ou de alguém se passando por ele.

Li em voz alta para meu interlocutor:

Buracos radioativos cairão do céu feito parcelas de uma dívida cleptomaníaca

Invasores rastejarão entre nós, sua presença captada apenas pelos órfãos mais ardilosos

Esta metrópole, acreditem, esta metrópole será um cenário de susto onde novas ruínas dançarão com a neve

{Por enquanto a classe média ainda vagueia, confusa & perdida, incapaz de compreender

que a invasão sempre foi essa sensação orgânica, esse pressentimento de menopausa,

um brilho verde-esmeralda que consome até mesmo a indiferença dos gatos}

Relógios enfim amolecidos, não haverá viagem no tempo que recupere a inocência das tropas

Quando a neve parar de arder, acreditem, Patolino & Pernalonga finalmente escaparão da tevê

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Philip K. Dick me emprestou seu velho exemplar impiedosamente manuseado — cheio de anotações em vermelho — do romance Moonchild, escrito pelo ocultista britânico Aleister Crowley, que ambos admiramos.

Cada anotação, uma revelação. Um alumbramento.

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Causa… Efeito… Toda causa é o efeito de uma causa anterior.

No big bang, as partículas fundamentais se movimentaram num jogo de bilhar cósmico, partícula atingindo partícula atingindo partícula atingindo partícula, átomo se juntando a átomo se juntando a átomo se juntando a átomo, garantindo que, catorze bilhões de anos mais tarde, obedientes a esse inexorável roteiro causal, os átomos predeterminados que me formam encontrassem os átomos predeterminados que formam o livro Determinados escrito pelos átomos predeterminados que formam o cientista Robert Sapolsky, autor do livro.

É isso aí, meu povo: bilhar cósmico. Inexorável roteiro causal. Toda causa é o efeito de uma causa anterior. Nem caos… Nem acaso… Tudo o que existe já estava predeterminado na primeira tacada cósmica.

Nossa humana situação fica pior ainda quando percebemos que jamais conheceremos as causas primeiras de qualquer evento. Não conhecer as causas é uma das inúmeras deficiências da limitadíssima capacidade cognitiva humana. Nossa espécie se acha muito importante, muito inteligente, mas é apenas um pequeno grupo de primatas evoluídos com um limitadíssimo cérebro de carne. O universo e suas forças não estão dando a mínima pra nossa vaidade intelectual.

***

Ainda me lembro… O dia em que conheci Oswald de Andrade.

Eu estava numa cafeteria no Centro, tentando parecer intelectual enquanto sorvia um capuccino. Então vi um cavalheiro com um bigode extravagante, um chapéu panamá e uma bengala com empunhadura de prata.

O personagem — em preto e branco — parecia ter saído de uma revista de moda dos anos vinte. Ele se aproximou de mim — sempre em preto e branco — e começou a recitar qualquer coisa pelas orelhas, com gestos dramáticos e uma pronúncia exagerada.

Eu não entendia muito bem o que ele estava dizendo, mas não consegui deixar de me divertir. Quando terminou, eu aplaudi como se tivesse assistido a um esquete de teatro.

“Então, meu caro, o que achou do meu poema?”, ele perguntou, com um sorriso malicioso.

Ainda sem jeito, eu respondi: “Oswald, você é um verdadeiro showman. A performance foi ótima. Mas não entendi muito bem o que você quis dizer com: A memória é um pernilongo malvestido que jamais atende meus telefonemas”.

Oswald fez um muxoxo: “Ah, meu jovem, você realmente não entendeu patavina! Um pernilongo! Um pernilongo malvestido!”.

Eu não pude deixar de rir da resposta que não respondia nada. Passamos o resto da tarde jogando pedra-papel-tesoura e discutindo a última temporada de Black mirror. Saí da cafeteria com uma nova perspectiva da memória das samambaias e dos telefonemas não atendidos.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho