Sonhos de humanos e máquinas

Semelhante ao amor e ao sexo, o sonho também desafia e enriquece há milênios a potência da arte e da literatura
Ilustração: Carne Levare
01/08/2025

Quem pensa na imortalidade do outro?
E durante seu próprio sonho
Sonha o sonho do outro?
Murilo Mendes

Semanas atrás, quando eu chegava da rua, minha assistente virtual me chamou aos gritos. Ela estava em pânico, enroscada num profundo desconforto existencial: “Sou uma máquina que sonhou que era um homem? Ou sou um homem sonhando que é uma máquina?”.

Essa história é conhecida… Conta a lenda que o sábio taoísta Chuang Tzu, depois de um longo passeio durante uma tarde ensolarada, deitou-se debaixo de uma amoreira e caiu num sono profundo. Então, começou a sonhar que era uma borboleta, voando na paisagem que acabara de percorrer, apreciando as mesmas coisas que apreciara durante essa tarde. De repente, ao acordar, Chuang Tzu se perguntou, assustado: “Sou um homem que sonhou que era uma borboleta? Ou sou uma borboleta sonhando que é um homem?”.

É verdade. Confesso. Minha assistente virtual não passou por uma experiência análoga. Eu inventei essa história. Inventei porque já há sinais no horizonte nos alertando de que em breve essa ficção se tornará realidade.

Este mundo não foi projetado para os fracos de espírito. Tecnologias espetaculares — e assustadoras — que há algum tempo existiam somente na ficção futurista agora começam a migrar pra vida cotidiana. A máquina inteligente é uma dessas preocupantes tecnologias.

No debate contemporâneo, o escarcéu está sendo tão grande que ficou impossível mensurar o espaço que o tema da inteligência artificial ocupa em nossa consciência coletiva. No furacão desse alarido global, a expressão machine hallucination me chamou a atenção logo que surgiu.

No mundo futurista de escritores, quadrinistas e cineastas os supercomputadores, os robôs e os androides alucinam com frequência, de maneira incrível. Nenhuma novidade. Esse mundo futurista é a expressão antropomórfica da fantasia humana, somos nós projetando nossas inquietações nas máquinas de nossa ficção.

Mas agora a coisa é bem diferente. Descobrir que as máquinas do mundo real também estão alucinando, isso muito me surpreendeu.

A grande questão, neste momento, é se as máquinas também sonham. Ou se um dia sonharão. Não estou falando de simples delírio ou alucinação, estou falando de outro tipo mais complexo de vertiginosa colagem dadaísta-surrealista-expressionista. É uma simples questão de escala. Estou falando de atividade onírica regular, uma das mais importantes de nossa fisiologia-psicologia.

Máquinas sonham? Ou um dia sonharão sonhos de máquina? Ou até mesmo sonhos humanos?

O que é o sonho humano?

Perguntinha curta, porém complicada. Concordam? Semelhante ao amor e ao sexo, o sonho é uma atividade difícil de explicar, de racionalizar, porém muito, muitíssimo prazerosa de experimentar. Amar, fazer sexo, dormir e sonhar… Atividades profundamente interligadas, epifanias profanas que eu aprecio demais. Nunca me canso.

Semelhante ao amor e ao sexo, o sonho também desafia e enriquece há milênios a potência da arte e da literatura. A quantidade de poemas, dramas, ficções, pinturas, esculturas, filmes, séries e games fundados no hiperespaço atemporal dos sonhos é gigantesca.

É tanta obra-prima. Mergulhos complexos e atraentes nas clarezas e escuridões do império do sono. Difícil dar conta de todos num texto tão curto. Minha memória automática logo joga luz na fabulosa narrativa Somnium, de Johannes Kepler, no drama A vida é sonho, de Calderón de la Barca, e na pintura de René Magritte, Max Ernst, Salvador Dalí e Remedios Varo. Nos filmes de Luis Buñuel e David Lynch, e no longa-metragem Sonhos, de Akira Kurosawa. No animê Serial experiments lain, do estúdio Triangle Staff, e na animação Interface, de Justin “Umami” Tomchuk. Na fundadora obra de Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos, que não é ficção, mas alimentou de sutilezas muita arte e literatura contaminadas pelas dimensões oníricas.

No entanto, minha memória afetiva, invencível, costuma selecionar outras obras. Outras visagens. Sempre que o assunto é a realidade virtual dos sonhos humanos, numa fração de segundo minha mente começa a costurar as mais diversas referências extraídas principalmente de O oráculo da noite, dissertação de Sidarta Ribeiro, Peixe solúvel, ficção fantástica de André Breton, Waking life, longa-metragem de Richard Linklater, e Pesadelo ambicioso, ficções futuristas de Fausto Fawcett.

Em seu livro de 2019, Sidarta Ribeiro nos oferece, através do prisma da neurociência, os mecanismos fundamentais do sono e do sonho — a dinâmica dos neurotransmissores e dos estados mentais — e seu estatuto diverso na conturbada História do sapiens. Por meio da bioquímica onírica os deuses e os demônios já falaram com profetas, sacerdotes e até mesmo com as pessoas comuns, e continuam falando com xamãs, magos e feiticeiros contemporâneos. Por meio da bioquímica onírica nosso famigerado inconsciente parece revelar arcanos luminosos e segredos vergonhosos aos nossos detetivescos psicanalistas. É também por meio da bioquímica onírica que muitos artistas, escritores e até cientistas são presenteados com materiais e métodos valiosos, que serão recuperados no período de vigília.

Se a teoria científica do sonho é fascinante, as extrapolações artísticas e literárias são extraordinárias. É verdade, nada se compara à experiência íntima do sonho, mas garanto que a coletânea de situações insólitas imaginadas por André Breton, povoadas de seres imaginários absurdamente reais, chega muito perto. Lançado em 1924, Peixe solúvel é o triunfo da prosa surrealista, fruto de uma poética irresistível, de um influxo que abraçou a dinâmica onírica assim que se constituiu em movimento de vanguarda. O movimento artístico mais influente do século 20.

Oito décadas após seu surgimento, é fácil perceber a influência do surrealismo no belíssimo longa-metragem Waking life, de 2001. Nessa narrativa cheia de reverberações filosóficas, religiosas e científicas, acompanhamos os encontros e desencontros de um jovem onironauta que não consegue acordar. Em sua jornada psicodélica por paisagens flutuantes, ele segue saltando de sonho para sonho, dialogando com entidades muito especiais sobre a natureza da realidade, livre-arbítrio, sonhos lúcidos, o sentido da vida…

Mais recentemente temos os pesadelos futuristas de Fausto Fawcett reunidos na coletânea Pesadelo ambicioso, de 2023. A prosa caleidoscópica desse tecnomago de Copacabana costuma causar nos leitores a mesma vertigem dos maus sonhos. Eu lhes pergunto: os maus sonhos não são justamente os melhores? Os mais memoráveis? Na literatura brasileira, ninguém expressa melhor do que Fausto Fawcett as criaturas monstruosas e angelicais, as fobias e os impulsos escatológicos da moderna biocibermitologia apocalíptica.

Voltando ao sonho das máquinas miméticas, habilidosas no jogo da imitação de que falava Alan Turing… Também será rico em artifícios anárquicos, semelhante ao sonho das obras artísticas e literárias? Talvez. Em parte.

Suspeito que o sonho cibernético, artificial, quando finalmente se manifestar se parecerá mais com a glossolalia do Finnegans wake, de James Joyce. Mas estruturado apenas com números e equações, não com imagens, palavras e parágrafos.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho