Sofia Soft: diário

Aos cinquenta e quatro anos, estou lendo pela primeira vez “A história sem fim”, e estou encantado, não é mais do mesmo, é phoda pra karalho
Ilustração: Aline Daka
01/06/2021

Agosto de 2016
Muitos autores escrevem apenas para o seu tempo. Outros, mais ambiciosos, escrevem para a sua geração e para as gerações futuras. Mas esse meu amigo, pessoa ao contrário, escreve para as gerações passadas. Apenas para as gerações passadas. Escreve para os escritores que vieram antes de nós. Somente esses o entenderão e o aceitarão. Agora eu compreendo seus momentos introspectivos, a xícara de café de um lado, o cigarro do outro, entre os dedos vigilantes… Em seus devaneios ele se imagina viajando a Paris e entregando seus poucos livros a Cortázar, depois de viajar a Praga e entregá-los a Kafka, depois de viajar a São Petersburgo e entregá-los a Dostoiévski… Eu quase posso escutar seu pensamento: “Não aprendi outros idiomas. Chegando a São Petersburgo, ou a Praga, ou a Paris, ou a qualquer outra cidade estrangeira, eu procuraria o escritor, faria uma saudação ensaiada (uma frase, apenas), entregaria os livros, apertaria sua mão e diria adeus, emocionado. Somente isso”.

Agosto de 2017
“Toda a arte é política”, ela repete insistentemente.

Eu digo: “Antes de ser política, antes de ser qualquer coisa bem específica, toda a arte É.”

Toda a arte É. Verbo intransitivo, antes de começar a ser verbo transitivo.

Quando finalmente começa a ser verbo transitivo, toda a arte é entusiasmo multifacetado, camaleônico.

Se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo político, nesse caso, sim, toda a arte é política, é uma ação na arena pública. Mas se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo religioso, toda a arte é uma epifania. Se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo poético, toda a arte é poética, metalinguagem. Se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo erótico, toda a arte é um poderoso impulso vital. Se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo filosófico, toda a arte é uma ferramenta do autoconhecimento. Se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo mágico, toda a arte é magia, encantamento. Se as pessoas estão tomadas pelo entusiasmo científico, toda a arte é uma sofisticada equação do universo.

Agosto de 2018
Duas horas e quinze minutos. Garoa fina no quintal. Enquanto ele lavava a louça do almoço (eu enxugava e minha tia guardava), meu tio de São Paulo dizia:

Pegação é comigo mesmo. Sou um pegador nato. Sayonara está de prova. Pego com muito prazer. Durante as caminhadas, sempre que encontro uma doação de livros, volto pra casa assanhadinho. Recentemente, entre os títulos capturados num brechó, estava A história sem fim numa edição não-comercial, bancada pela Secretaria da Educação. Pesquei. E comecei a ler, sem muita expectativa.

Quando o filme foi lançado, em 1984, eu já morava em Sampa. Fui ver, mas não saí totalmente satisfeito. Até pensei em ler o livro, pra comparar, mas por alguma razão não rolou… (Recentemente eu soube que Michael Ende ficou putíssimo com o filme, processou o estúdio e perdeu, mas conseguiu retirar seu nome dos créditos iniciais.)

O tempo passou, fiz quarenta anos e, de repente, seguindo a trilha das adaptações pro cinema, comecei a ler literatura juvenil: O mundo de Sofia, O senhor dos anéis, Harry Potter (apenas os três primeiros volumes), As crônicas de Nárnia, a trilogia Fronteiras do universo, Percy Jackson e os olimpianos (apenas os três primeiros volumes)… A história sem fim não entrou na fila porque… Sei lá. Eu já estava saturado de magia e sobrenatural, e desconfiava que seria mais do mesmo.

  1. S. Lewis certa vez disse que um livro realmente bom, escrito pra crianças ou jovens, fatalmente encantará também os adultos. Na verdade, ele disse: “Uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”. Eu concordo. Aos cinquenta e quatro anos, estou lendo pela primeira vez A história sem fim. E estou encantado. Não é mais do mesmo. É phoda pra karalho!

Não vou entrar em muitos detalhes (ai, que preguiça). Até porque todos nós sabemos que não estamos no terreno da unanimidade burra. Cada maluco tem seus livros do coração, lidos no momento mais certo — ou mais errado — de sua bagunçada jornada particular. Como diria minha amiga Maria Balé: cada um delira conforme sua história. Ou como diria meu vizinho Protágoras: cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas.

Mencionarei apenas as três surpresas que mais me encantaram até agora (estou na metade da leitura) no romance de Michael Ende:

— Não há um vilão no enredo. Não alguém de carne e osso e ambição desmedida. O antagonista é da ordem do existencialismo. É o Nada, uma força cega e indiferente — numa palavra: a-moral — que vai apagando tudo o que encontra pela frente, pecadores e virtuosos, nobres e plebeus.

— No centro de todos os diálogos, até daqueles aparentemente mais banais, o assunto é uma ferida emocional: medo, raiva, tristeza, vergonha, ignorância sobre o verdadeiro sentido da porra da vida…

— Metalinguagem: os personagens têm consciência de que estão num livro, numa história infinita que está sendo contada pra um leitor, e esse conhecimento (angustiante pra uns, abençoado pra outros) interfere no rumo do enredo.

Até aqui (página duzentos), vai tudo muitíssimo bem. Só rezo pra que o autor não estrague tudo daqui até o final. Às vezes acontece…

Agosto de 2019
Hoje eu acordei com um dilema muito sério: devemos investir todos os recursos disponíveis (cientistas, engenheiros e bilhões de dólares) na colonização de Marte ou na criação da máquina da empatia?

Explico: a colonização de Marte, já em andamento, será um evento épico que mudará o rumo da História. Assistam à mini-série Marte, na Netflix, e vocês entenderão a dimensão desse evento.

Mas a máquina da empatia parece ser uma aquisição mais urgente, para o bem da humanidade. Muito mais urgente do que a humanização predatória do planeta vermelho, conforme nosso passado histórico garante que será.

Imagine o seguinte cenário: um homem é conectado à máquina da empatia. Agora ele está sentindo tudo o que outra pessoa sentiu. E a primeira sensação é a de uma facada entre as costelas, a dor. Depois outra facada, o medo. E por fim a morte por estrangulamento. Esse homem está experimentando em tempo real, sem edição, a mesma dor e o mesmo medo que sua mulher sentiu, quando ele a assassinou.

Outro exemplo: uma autoridade negacionista, conectada à máquina da empatia, está experimentando em tempo real, sem edição, a agonia de um paciente numa UTI, morrendo de Covid-19. Ele não consegue respirar. Está se debatendo, se afogando no oceano da doença. O sofrimento é excruciante.

Eu acredito que essas pessoas voltarão diferentes, da experiência. Voltarão melhores? Mais humanas? Desconfio que sim.

Nós também, quando pudermos sentir uma criança violentada. Ou bombardeada. Ou um sem-teto numa noite glacial… Quando tudo for compartilhado intimamente, duvido que o privilégio da ignorância predatória não sofrerá uma queda.

A máquina da empatia foi uma invenção literária de Philip K. Dick, no romance Androides sonham com ovelhas elétricas?

Pensando bem, não há dilema: eu acredito que essa máquina é muito mais necessária na vida real, hoje, do que a colonização de Marte. Porque ela será muito útil também na colonização de Marte, se quisermos uma colonização mais humanista.

Agosto de 2020
Como não amar um idioma que tem o verbo pirulitar-se?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho