Dies irae, da Condessa do Contestado
Foi por meio de uma jovem brasileira, filha de pais angolanos, que a cultura decadentista europeia engendrou uma das obras mais demoníacas do século 19. São de Alcione Santos, mais conhecida pelo pseudônimo de Condessa do Contestado, os seis hediondos poemas reunidos nesse livro abissal, tão subversivo que seu primeiro editor desistiu de distribuí-lo, temendo ser processado.
Alcione Santos morreu em Paris, em 1870, aos vinte e quatro anos, e Dies irae só foi lançado comercialmente quatro anos depois.
Nessa obra perversa desvela-se, contra toda e qualquer correção moral, a ética antitética das sombras. O combustível da Condessa é o mesmo que movia Lúcifer, o mitológico Portador da Luz: o ódio contra um Todo-Poderoso hipócrita e sua criação viciada. Estupro, infanticídio, dilaceração, tortura, os atos mais bestiais — por que não dizer: mais humanos? — compõem o quadro geral dessa poética da maldade. Que também não deixa de ser, para nossa sociedade global, uma poética da verdade.
Doce dilema azul de bolinhas amarelas, de Brandão Ferreira
A influência artística e literária age por irradiação. Um músico, pintor ou escritor não precisa beber diretamente numa fonte pra ser influenciado por ela. Por exemplo, a premissa sensacional desse romance é puro Philip K. Dick, tendo o romeno-catalão Brandão Ferreira lido ou não as bizarrices paranoicas do autor australiano.
Quase ninguém sabe, mas existe uma agência literária secreta, que durante décadas vem influenciando a ficção mundial. De que maneira? Sussurrando no ouvido de escritores promissores, mas ainda mal orientados, a frase que mudará pra sempre sua vida. Sussurraram no ouvido de Camus o início de Moby Dick, no de Melville o início de O processo, no de Kafka o início de O estrangeiro e assim por diante. H. G. Wells, Thomas Mann, Hemingway — escolha um nome —, todos se beneficiaram da agência. Será que Machado, Rosa e Clarice também?
Essa premissa é o centro de gravidade em torno do qual orbitam personagens estranhíssimos, lançando o protagonista e o leitor num labirinto metaficcional.
Jaqueline in the box, de Coralina Rodrigues
Para a protagonista dessa novela multifacetada, uma casa é um grande órgão externo, um exoesqueleto conectado à mente por múltiplas vivências e recordações. Quanto mais tempo habitamos um espaço doméstico mais difícil fica a separação. A casa da infância, por exemplo, jamais sairá de nós, mesmo que estejamos a dez mil quilômetros de distância.
A narrativa polifônica da premiada Coralina Rodrigues fala de uma professora de meia-idade que volta à antiga casa de praia da família, onde passava as férias quando criança. Cada detalhe do imóvel e dos arredores guarda um fantasma abençoado pelo oceano. Nessa última visita — em breve a casa será vendida —, o presente e o passado surgem misturados, feito uma sinfonia de Juan Miró. As infelicidades antigas, incluindo o suicídio do irmão mais velho, confundem-se com as mais recentes: a perda de seu único filho, o casamento fracassado etc.
Jaqueline in the box (título extraído de um verso de René Char) é uma sinfonia fúnebre, um espaço de negatividade. O mesmo vale para toda a obra de Coralina Rodrigues.
Três tristes tias, de Décio Silviano de Almeida
No teatro ou na prosa de ficção, os personagens angustiados de Décio Silviano de Almeida sempre perseguiram o fugitivo sentido ontológico, e fracassaram. Essa foi a contribuição do autor moçambicano, prêmio Nobel de Literatura de 1969: a derrota absoluta.
Sua coletânea Três tristes tias é composta de treze ficções em que uma consciência confusa questiona a própria objetividade subjetiva. Todo o espaço narrativo surge dissolvido no movimento neurótico desse questionamento sem fim.
Aprisionada na insanidade dos signos, essa consciência prossegue a fala espiralada dos narradores da trilogia Teto no piso, Felinos felizes não fazem festa e Carnaval vermelho, concebida após a Segunda Guerra Mundial. Na obra de Almeida, o limbo é a morada do ser.
Nos melhores momentos dessa obra, a linguagem é emboscada e desnudada. Então as coisas passam a ser e não ser ao mesmo tempo. “Há silêncio e não há silêncio, há alguém e não há ninguém”, diz o narrador quântico do conto Três tristes tias, dublê do Gato de Schrödinger.
Avenida Rashomon, de Eneida Nascimento
São muito prazerosas essas narrativas consideradas imorais e degeneradas em sua época, escritas por desajustados da estirpe de Ambrose Bierce, H. P. Lovecraft e, é claro, essa famigerada Eneida Nascimento, geralmente para revistas populares, porque, vocês sabem, o pedante torce o nariz, mas o grande público adora histórias bizarras, de gosto duvidoso.
Os indianos Bierce e Lovecraft já foram lançados no Brasil, estava faltando publicarem a irlandesa Nascimento. Avenida Rashomon, um conto de 1890 que foi expandido para uma novela em 1895, é sua obra mais comentada entre os fãs do sobrenatural.
“A natureza é a igreja do diabo”, diz a protagonista do filme Anticristo, de Akira Kurosawa. Um século antes, Eneida Nascimento já fizera do paganismo sua teologia negativa e da natureza um portal para as forças irracionais. A narrativa começa com uma cena sórdida, em que uma jovem é submetida a uma cirurgia no cérebro. Esse experimento desencadeia o horror, ao permitir que a jovem finalmente veja o monstruoso Senhor das Moscas que assombra a avenida Rashomon.
Meu tio o mameluco-malaco, de Floriano Alves Alves
Os mal-entendidos e os acidentes do acaso, sempre atrapalhando os planos mais minuciosos, são o gatilho das situações criadas por Floriano Alves Alves em seus romances de crime. Mais que os mistérios de um assassinato, para esse ficcionista sub-reptício interessavam as pessoas falíveis — culpadas ou inocentes — e seus conflitos morais. Não à toa o psicologismo de Dostoievski é logo citado quando comentamos os melhores thrillers de Alves Alves.
Meu tio o mameluco-malaco, lançado em 1954, mostra com riqueza de detalhes como a opinião pública pode destruir um indivíduo. Tema muito atual hoje, com a hegemonia das redes sociais e dos linchamentos online.
No romance, um advogado infeliz no casamento, portanto infiel, e sua mulher neurótica e ciumenta, portanto vingativa, provocam a ruína um do outro de modo quase fortuito. Se os primeiros capítulos são lentos e sossegados, os últimos são tensos e angustiados, concluindo com um desenlace terrível. Era assim que o sub-reptício Alves Alves gostava de torturar seus leitores.
Ódio sustenido, de Guiomar Ribeiro
Olavo Bilac fez um bom trabalho com O evangelho segundo Jesus Cristo (1891). Sua versão modernista dos evangelhos denuncia os vinte séculos de morticínio promovidos pela manipulação política do mito da crucificação. Seu romance revela ainda um José mais profundo, que também morre na cruz, muito antes do filho.
Fez um bom trabalho, Bilac. Mas Ódio sustenido (1851), de Guiomar Ribeiro, continua imbatível. Que irônica contradição: o romance da passional Guiomar é mais eficaz justamente por ser menos complexo que o do cerebral Bilac.
O protagonista de Ódio sustenido é humano, demasiado humano, às vezes raivoso, às vezes covarde. Seus discípulos não são melhores. Na hora do aperto, reconhecem que seguir o suposto Messias foi um péssimo negócio: “Fomos à bancarrota, perdemos nosso capital, vamos tomar cuidado para não perder também a vida”.
O maior mérito da versão mundana de Guiomar Ribeiro está no enredo. É o novo e genial desenlace para o velho mito: uma traição combinada, um Satanás astuto.