Sete dias

Uma discussão honesta em torno de qualquer livro, filme, música etc. precisa ser, acima de tudo, um momento de contemplação, não de competição
Ilustração: Carne Levare
01/03/2025

{Segunda-feira}
Escrevemos as literaturas e as literaturas nos reescrevem.

Repito:

Escrevemos as literaturas e as literaturas nos reescrevem.

{Terça-feira}
Um fenômeno bastante natural, matematicamente lógico, que poucas pessoas comentam — poucas pessoas comentam talvez por ser um fenômeno bastante natural, matematicamente lógico —, é a potência acumulativa da ampliação do repertório cultural.

{Lembrando que, na Teoria da Informação, o repertório se refere a todo o conhecimento que os indivíduos possuem, seu nível cultural & educacional. Trata-se do conjunto de saberes & crenças acumulados, que moldam & reforçam os ideais das pessoas.}

Muito me espanta que, em conversas sobre a qualidade ou a falta de qualidade de livros, filmes, músicas etc., os interlocutores jamais levem em consideração as inevitáveis diferenças de repertório. A conversa rapidamente vira um debate acirrado, porque os envolvidos pressupõem que estão todos no mesmo nível cultural & educacional, possuem os mesmos saberes & crenças.

Não estou falando de valor estético, afinal o valor estético é algo impossível de ser provado. Estou falando de valor emocional. Afeto, amor, paixão… Pra mim sempre foi óbvio que as pessoas se apaixonam por determinados livros, filmes, músicas etc., e durante um debate tentam justificar racionalmente sua paixão. Tentam provar racionalmente o alto valor estético das obras pelas quais são apaixonadas, ou então tentam provar o baixo valor estético das obras pelas quais os adversários são apaixonados. Pra essas pessoas o mais importante é provar o improvável, e vencer intelectualmente a discussão. Não estão nem aí para o fato de que “Cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas” {Protágoras de Abdera}. Não estão nem aí para o fato de que “Cada um delira conforme sua história” {Maria Balé}.

Uma discussão honesta em torno de qualquer livro, filme, música etc. precisa ser, acima de tudo, um momento de contemplação, não de competição.

Contemplação: admirar, sem julgamento, a paixão dos outros por determinadas obras. Principalmente a paixão dos outros por determinadas obras que não apreciamos.

Contemplação: admirar, sem julgamento, a antipatia dos outros por determinadas obras. Principalmente a antipatia dos outros por determinadas obras que apreciamos.

Perda de tempo. Uma grande perda de tempo… Numa conversa sobre livros, filmes, músicas etc., nada é mais desagradável do que alguém tentando nos convencer de que uma obra que adoramos não tem nenhum valor ou de que uma obra que desprezamos é absolutamente maravilhosa. Na tentativa de convencimento, o interlocutor usa argumentos supostamente racionais, que no entanto não passam de uma sucessão de metáforas, vieses & falácias. Afinal o valor estético é algo impossível de ser provado.

Contra qualquer argumentação supostamente racional há também a faixa de repertório dos interlocutores. Uma pessoa que já leu mais de três mil romances {repertório maior} dificilmente ficará impressionado com o romance de um jovem autor estreante {repertório menor}. Ou mesmo com o novo romance de um autor veterano de talento mediano {a grande maioria}. A novidade é uma qualidade que vai ficando mais rara, conforme envelhecemos. Praticamente tudo o que parece novidade para os jovens leitores já figurou em obras anteriores, obscuras ou não.

{Lembrando que, na Teoria da Informação, a novidade, a informação nova, sempre se opõe à redundância, à repetição de informação já conhecida. Certos estudiosos argumentam que, pra ser bem-sucedido entre os leitores de repertório médio & médio-alto, uma obra literária precisa conter no mínimo setenta por cento de redundância e no máximo trinta por cento de novidade. Valores maiores que esses — demasiada previsibilidade ou demasiada imprevisibilidade — provocam o tédio ou a incompreensão.}

Voltando à vaca fria… Perda de tempo. Uma grande perda de tempo… Numa conversa sobre livros, filmes, músicas etc., nada é mais desagradável do que alguém tentando nos convencer de que uma obra que adoramos não tem nenhum valor, nenhuma novidade, ou de que uma obra que desprezamos é absolutamente maravilhosa, cheia de novidade.

Uma discussão honesta em torno de qualquer livro, filme, música etc. precisa ser, acima de tudo, um momento de contemplação, não de competição. Afinal o valor {amor} estético é algo impossível de ser provado.

{Quarta-feira}
Um amigo que está lendo Café da manhã dos campeões mandou mensagem: “Poxa, mas isso é o mais puro Olyveira Daemon! Quem o Kurt pretendia enganar?”. Exatamente, meu amigo… O problema das viagens no tempo são os copistas reversos. Puta desaforo. Eu ainda era só um adolescente sem livros publicados e o Vonnegut já me chupinhava.

{Quinta-feira}
O que falta nas pessoas de carne & osso?

Profundidade psicológica.

Gente de carne & osso é sempre muito rasa. Vivem na Planolândia.

Inclusive escritores & artistas.

Parece que a tal profundidade psicológica só existe mesmo nos icebergs da ficção…

{Sexta-feira}
Quase ninguém percebeu, ainda. Foi uma explosão irreversível, mas silenciosa, que só reverberará talvez em cem anos, ou duzentos… Dirk Gently e o genial conceito do detetive holístico {1987} encerrou a gloriosa era do método científico e da lógica dedutiva na ficção de investigação, iniciada 146 anos antes com a primeira aparição de Auguste Dupin {1841}. Depois dos romances Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently e A longa e sombria hora do chá da alma, investigadores do tipo Sherlock Holmes perderam completamente a graça. {Título para um possível ensaio: Os novos Sherlock Holmes serão holísticos, ou não serão novos Sherlock Holmes.}

{Sábado}
A verdadeira autobiografia, a autobiografia mais sincera & autêntica, não é a que acontece dentro da cabeça do biógrafo-biografado? Então, na hora de escrever, o desafio não é encontrar a expressão mais genuína, mais fidedigna, enfim, a expressão que mais se aproxime desse selvagem fluxo mental?

{Domingo}
O que vocês chamam de obra-prima eu chamo de objeto mágico. Um objeto mágico é qualquer obra de arte cuja aura avassaladora produz admiração, reverência, adoração, enfim, a mais profunda veneração. Todos os clássicos da arte e da literatura são objetos mágicos. Uma característica notável dos objetos mágicos é que suas múltiplas camadas expressivas não precisam ser acessadas & compreendidas integralmente para que a admiração, a reverência, a adoração, enfim, a mais profunda veneração aconteça. Pouquíssimas pessoas leram & compreenderam integralmente a Ilíada ou a Odisseia, a Divina comédia, Dom Quixote, Hamlet, Grande sertão: veredas ou O jogo da amarelinha. Mas a simples visão desses livros numa prateleira ou em cima de uma mesa já provoca um arrepio… um frêmito. Sua aura começa a nos mobilizar à distância, a partir de nossas retinas, antes mesmo que toquemos o papel impresso & costurado. Podemos racionalizar à vontade. Podemos afirmar que a arte e a literatura são ofícios tão corriqueiros quanto qualquer outro: sapatos, roupas, eletrônicos, produção & preparo de alimentos… Podemos repetir a ladainha de que “até mesmo os objetos literários perderam a aura na era da reprodução industrial”… Mas quando eu vejo uma edição do Fausto ou do Ulysses em cima de uma mesa, no idioma original ou em tradução, sinto que esses ídolos de papel & tinta estão vibrando numa frequência muito mais refinada & sobrenatural. Na dimensão do sagrado. Isso não é tecnomagia?

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho