Quiosque-satori

Dois eventos muito bizarros põem protagonistas em meio ao “fenômeno das zonas indeterminadas” e a diálogos sobre pessoas não-ficcionais
Ilustração: Tereza Yamashita
01/02/2022

Certa tarde de sábado, uma estranha visivelmente chapada — erva? cogumelo? — saiu da multidão, encostou em meu balcão e foi longo disparando:

Você se considera uma criatura simples ou complexa?

O quê?

Você se considera uma criatura simples ou complexa?

Por que está me perguntando isso? Afinal, quem é você?

Preste atenção, estúpido. Um crítico literário — na verdade, meu querido pai, Xaquiamuni Buda, o Iluminado — certa vez escreveu que a personagem de uma narrativa é uma criatura de contornos definidos e definitivos, uma criatura simplificada vivendo situações exemplares de modo exemplar.

O que isso significa? O que eu tenho a ver com isso?

Diferentemente das complexas criaturas do mundo não-ficcional, que são abstratas, desfocadas, contraditórias, opacas e misteriosas, personagens são criaturas concretas, nítidas, coerentes, transparentes e acessíveis.

Por que está me dizendo tudo isso?! Não conheço teu pai. Eu detesto literatura. A última vez que eu abri um romance foi no ensino médio.

Veja bem. Das pessoas não-ficcionais, de carne e osso, nós conhecemos, além da aparência física, no máximo alguns fragmentos psicológicos e comportamentais. Jamais suas crises e seus conflitos mais obscuros, jamais sua essência múltipla, mutável e imprevisível — numa palavra: inefável. Mas das pessoas ficcionais, feitas de orações e parágrafos, de recortes e montagens, nós conhecemos tudo o que importa conhecer, externa e internamente, ou seja, nós conhecemos toda a sua essência esquemática, imutável e previsível, em detalhes. Por que isso? A resposta é fácil. É porque a vida das pessoas não-ficcionais é fluida e imprevisível, enquanto a vida das pessoas ficcionais obedece do início ao fim a uma lei bastante rígida chamada lógica-do-personagem, ou seja, uma sólida linha-de-coerência determinada, editada e fixada pra sempre pelo todo-poderoso Autor da narrativa.

Eu já estava quase mandando a maluca tomar no cu, quando, sem sequer se despedir, ela me deu as costas, entrou na multidão e desapareceu.

Mas sua presença-ausência continuou me assombrando um pouquinho, dando tapões em minha nuca. Subitamente minhas retinas começaram a captar palavras escritas e — zás-trás alakazam sim-salabim — eu passei a enxergar ao meu redor umas finíssimas linhas de texto, a programação de minha realidade.

Vomitei muita preposição nessa tarde.

***

Foi numa terça ou numa quarta-feira à noite que um Exu Tranca-Ruas saiu da multidão, encostou em meu balcão e foi longo disparando:

O senhor mire-veja: uma mulher entra num ônibus com seu bebê. O motorista começa a rir: “Ai, meu Pai Celeste! Esse é o coitadinho mais feio que eu já vi”.

O quê?

Acorda, camarada. Não prestou atenção no que eu falei? Uma mulher entra num ônibus com seu bebê. O motorista começa a rir: “Ai, meu Pai Celeste! Esse é o coitadinho mais feio que eu já vi”.

Ah, entendi…

Furiosa, a mulher vai pro fundo do ônibus, senta e resmunga para o passageiro ao lado: “O cretino do motorista me insultou”. O passageiro responde: “Não deixa barato. Volta lá e cospe na cara do filho da puta! Pode ir, eu seguro seu cachorro pra você”.

Rá, rá, essa foi boa…

As zonas indeterminadas! Compreende?

O quê?

O fenômeno ficcional das zonas indeterminadas… Por que ninguém reconhece sua importância? Estão todos loucos?! Narcotizados?! As zonas indeterminadas são importantíssimas. São fundamentais, porra!

Zonas indeterminadas?

Exatamente! Numa narrativa escrita ou falada, as zonas indeterminadas são as regiões não explicitadas pelo narrador. São os pormenores ausentes, mas necessários, que a mente dos leitores trata de providenciar inconscientemente. Esses pormenores podem ser concretos ou abstratos, psicológicos ou sensoriais. Por exemplo, na piada que eu acabei de contar, ficamos sabendo que há uma mulher com um bebê, um motorista e um passageiro, mas… o que mais? O narrador não descreve os personagens nem o ônibus. A mulher é branca, negra, amarela ou vermelha? Alta ou baixa? Qual é a sua idade? Cabelo curto ou comprido? Tá usando saia ou calça? E o motorista e o passageiro? Qual é sua etnia e sua idade? Um é careca e o outro tem barba e bigode? O ônibus é velho ou novo, está cheio ou vazio? Em que capital eles estão, se é que estão numa capital? Quando aconteceu o entrevero? Em que década? Em que horário? Na alvorada, ao meio-dia ou no crepúsculo? Fazia calor ou frio? Outono ou primavera? Nada disso é revelado pelo narrador… É a mente dos leitores que define esses detalhes. Que preenche as zonas indeterminadas. De que maneira? Projetando inconscientemente, nos interstícios do texto, as características não definidas pelo narrador. Inserindo representações particulares — uma imagem particular de mulher com um bebê, uma imagem particular de motorista e passageiro, uma imagem particular de ônibus, e assim por diante — no vácuo existente entre as letras, entre as palavras, entre as frases, entre as orações, entre os períodos, entre os parágrafos… O senhor percebe? A compreensão da narrativa — a sensação de continuidade espaçotemporal — é um trabalho conjunto, em que o narrador fornece os tijolos visíveis enquanto os leitores fornecem o cimento invisível.

Entendo. Os leitores não preenchem os vazios com palavras ou frases, mas com impressões particulares, não-verbais, com uma cola que estabiliza o conteúdo ficcional.

Exatamente. Numa narrativa escrita ou falada, as zonas indeterminadas são preenchidas sempre com algum material maleável altamente pegajoso, projetado pela mente dos leitores. Esse fenômeno está ocorrendo também agora, nesta página.

Com nossos leitores…

Você é um personagem-narrador de fato lacônico, tuas descrições são deveras econômicas… Então, tudo o que os leitores sabem é que você é um homem e eu sou um exu. Você comunicou isso textualmente. Porém, eles não sabem, por exemplo, nossa exata aparência física: nossa idade, nossa altura, nosso peso, detalhes faciais — uma verruga? uma cicatriz? —, tom de voz, azia ou enxaqueca, tiques nervosos e outras características gestuais, essas coisas.

Não sabem sequer o tamanho deste quiosque. Nem a distância que me separa de você. A temperatura ambiente…

Os leitores não sabem. Então eles leem completando automaticamente os vazios com suas próprias expectativas e seus mais arraigados hábitos e preconceitos. Numa região abaixo da linha da consciência, sem sequer perceber, a mente dos leitores pré-determina automaticamente nossas características não reveladas.

Automaticamente.

Sem sequer perceber.

Entendo. A mente humana não suporta incertezas nem dúvidas muito persistentes.

Exato. Sempre que entra em contato com uma informação ambígua ou incompleta — acidentes que põem em risco a saborosa ilusão da continuidade espaçotemporal —, a mente humana procura reestabelecer rapidamente o equilíbrio cognitivo, preenchendo ela mesma as lacunas.

Faz sentido… Muito parecido com o processo de reconhecimento de padrões. A pessoa observa uma pintura abstrata, uma textura ou uma mancha na parede, as nuvens ou as estrelas no céu, e logo começa a enxergar desenhos ou imagens familiares. Esse equilíbrio artificial tranquiliza sua mente. Mas… e nós?

Nós?

Sim. Nós, personagens. As zonas indeterminadas continuam indeterminadas, pra nós. Não temos um corpo, um cérebro, uma mente… Não temos essa capacidade de completar os vazios. Sabemos apenas o que o Autor escreve, não conhecemos nada que não esteja no texto. Entende? Estou falando de igualdade de direitos. Em nosso mundo, seria possível subverter de algum modo essa lei implacável?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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