Quereres

O que a ficção sobrenatural (ou fantasia), a ficção científica (ou futurista) e a ficção fantástica (ou realismo mágico) têm em comum?
Ilustração: Carne Levare
01/12/2024

aos oito anos eu queria ser um cachalote

ou uma estrela de labaredas azuis

aos dezoito eu queria ser um desenhista incrível

aos vinte e oito eu queria ser um talentoso escritor

um fotógrafo fantástico, um empresário invencível

hoje, aos cinquenta e oito, eu queria ser um cachalote

ou uma estrela de labaredas azuis

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{Complexo de vira-lata… Au au au aaauuuuuu!}

Que em mais de cento e vinte anos de Prêmio Nobel de Literatura nenhum escritor brasileiro tenha sido laureado… Tadaaam! Temos aqui mais um caso dificílimo — esotérico — para a dupla Scully e Mulder, da série ARQUIVO X.

Os critérios desse pessoal da Academia Sueca é nota seis… nota sete, no máximo. Seu poder de discernimento estético raramente sai da média estatística. É o que a gente percebe passando os olhos pela lista de laureados nesses mais de cento e vinte anos.

Enquanto isso, no Brasil, faltam vergonha na cara e VONTADE POLÍTICA, como dizem os profissionais… Itamaraty, Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, Ministério da Cultura, União Brasileira de Escritores, Câmara Brasileira do Livro, faculdades de Letras, nossos principais críticos literários, os brasilianistas mais prestigiados — esse pessoal precisa se mexer, pourra.

{Outro caso dificílimo para a dupla Scully e Mulder: descobrir por que os escritores, os leitores e as instituições literárias brasucas jamais protestam contra a indiferença da Academia Sueca.}

Em vez de ficar babando ovo pra qualquer estrangeiro, nossas autoridades legitimadoras precisam escolher um escritor brasuca e fazer pressão. Qualquer escritor nota seis… nota sete, no máximo, atingirá o paladar dos suecos com a potência de uma iguaria sofisticadíssima.

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{Tomando algum fôlego}

Antes de mergulhar na piscina, no rio ou no oceano é sempre sensato puxar bastante oxigênio, encher bem os pulmões.

Faço isso todas as manhãs.

Antes mesmo da xícara de café, puxo meu exemplar de Cascos & carícias, sorvo duas crônicas da famigerada Hilda Hilst e me sinto pleno, arejado, pronto pra mergulhar na geleia geral da boçalidade humana.

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{O passado e a burguesia}
Apresentei em duas diferentes oficinas de criação literária meia dúzia de ficções do Rafael Sperling, minhas prediletas. Entre elas o miniconto Jesus Cristo espancando Hitler. Foi um grande alvoroço nas duas turmas. Boa parte da galera ficou sinceramente indignada com a iconoclastia escatológica do ficcionista carioca. Mas a perplexidade deste inocente oficineiro foi um pouco diferente. Juro que eu pensava que esse lance de épater le bourgeois era coisa do passado remoto. Tolinho… Ver acontecer em tempo real, bem na minha frente, me convenceu de que o passado e a burguesia quase nunca ficam no passado. Querendo ou não, Rafael Sperling agora pertence à famigerada Família dos Escritores Malditos. Foi inserido à força na foto de final de ano, ao lado de Gregório de Matos, Marquês de Sade, Baudelaire, Lautreámont, Artaud, William Burroughs, Campos de Carvalho, Hilda Hilst, Roberto Piva…

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{Literatura-sonho}
Querido amigo, em sua última carta — sim, carta, com envelope e carimbo do correio! — você me pede que explique mais uma vez, agora por escrito, a diferença entre ficção sobrenatural, ficção científica e ficção fantástica.

Farei isso também por carta. Atualmente não existe nada mais insólito do que a troca de cartas, concorda? Caneta e papel foi fácil de encontrar nas gavetas. Mas um envelope? Serei obrigado a ir à papelaria. Depois de escrever e envelopar a resposta, serei obrigado a ir a uma agência do correio, pegar fila. Foi o que eu disse: insólito demais.

Voltando à vaca fria, em minha carta repetirei o que eu disse na cafeteria, tempos atrás:

Na hora de definir ficção sobrenatural, ficção científica e ficção fantástica esqueça Darko Suvin, David Roas, Tzvetan Todorov e Wolfgang Kayser. Essa autores jogam mais sombra do que luz sobre a questão.

O que a ficção sobrenatural (ou fantasia), a ficção científica (ou futurista) e a ficção fantástica (ou realismo mágico) têm em comum? Você sabe: nos três tipos ocorre a subversão das leis da natureza.

Mas essa subversão acontece de maneiras diferentes, de acordo com a intenção do autor.

Na ficção sobrenatural, as pessoas se metamorfoseiam, ficam invisíveis, interagem com os mortos, trocam de corpo, viajam no tempo ou enfrentam criaturas impossíveis por meio de feitiços, maldições e encantamentos, ou seja, graças à magia.

Na ficção científica, as pessoas fazem as mesmas coisas por meio da engenharia genética, da mecânica quântica, da inteligência artificial etc., ou seja, graças à ciência e à tecnologia.

Na ficção fantástica, ao contrário, as pessoas fazem as mesmas coisas extraordinárias graças a nada e a ninguém. Não há feitiços ou máquinas, feiticeiros ou cientistas, por trás dos fenômenos insólitos. É o que acontece nos contos de Franz Kafka, Julio Cortázar e Murilo Rubião, entre outros mestres do absurdo.

Muito bem, querido amigo. No final da carta eu também planejo compartilhar contigo umas palavrinhas sobre o que recentemente batizei de literatura-sonho.

Antes, é preciso lembrar quais são os tipos de ficção fantástica:

Quanto ao gênero literário, temos as ficções em prosa {conto, novela, romance, drama} e as ficções em verso {poema narrativo, drama}.

Quanto à linguagem, também temos dois tipos:

A linguagem simples: objetiva, jornalística, função referencial {denotativa}. E a linguagem complexa: lírica, abstrata, função poética {conotativa}.

Quanto ao enredo, a mesma coisa:

O enredo simples, apresentando um ou dois fatos insólitos, e o enredo complexo, apresentando dezenas de fatos insólitos.

A partir disso, temos as combinações possíveis na literatura fantástica:

1. linguagem simples + enredo simples
2. linguagem simples + enredo complexo
3. linguagem complexa + enredo simples
4. linguagem complexa + enredo complexo

Os tipos 2, 3 e 4 são as três possibilidades do que eu batizei de literatura-sonho.

Na literatura-sonho, os personagens, o espaço, o ritmo e o enredo são fluidos, se metamorfoseiam o tempo todo.

Na segunda e na terceira possibilidades de literatura-sonho, em que predominam a linguagem complexa, o que acontece? Acontece o ruído e a alucinação oníricos. As regras básicas da gramática, do raciocínio causal, do pensamento lógico, não são respeitadas jamais.

Em outras palavras, querido amigo, essas possibilidades de literatura-sonho pressupõem alguma subversão da linguagem. Os fatos insólitos se desdobram, antes de tudo, no tecido da própria linguagem.

A estrutura padrão sujeito-verbo-complemento não é respeitada, muito menos as regras de pontuação.

{A etiqueta literatura-sonho me ocorreu durante a releitura das Galáxias, de Haroldo de Campos.}

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho