1. Sábio
Tempo é um recurso limitado. O tempo de vida e de leitura de todos os seres humanos é finito. O leitor do tipo sábio é alguém que administra bem esse recurso, não acumulando conhecimento sobre um único gênero literário ou uma única escola literária ou um único autor, mas procurando apreender a essência da arte literária por meio de leituras diversificadas, dos vivos e dos mortos, a fim de se conhecer e conhecer melhor seu momento histórico. Obviamente, sábios são raríssimos.
2. Erudito
Alguém que se aprofunda e se especializada num único gênero ou numa única escola literária ou num único autor, vivo ou morto, a ponto de conhecer, acumular e comentar longamente os detalhes literários e históricos de seu objeto de estudo. Esse é o perfil majoritário do leitor profissional, do pesquisador acadêmico. Obviamente, eruditos são menos raros que sábios.
3. Descompromissado
Alguém que lê um pouco de tudo, mais dos vivos que dos mortos, raramente os clássicos, sem a obrigação de um planejamento rigoroso, seguindo as ondulações do gosto geral, do mercado editorial e da vida social literária. Obviamente, descompromissados existem em maior quantidade do que todos os eruditos e sábios reunidos.
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Que tipo de escritor você quer ser?
1. Deus
Alguém que inventou uma nova maneira de se expressar em prosa ou verso, nadando contra a corrente literária hegemônica de seu tempo. Obviamente, deuses são raríssimos. E seu talento original, excetuando-se pouquíssimas exceções, só é reconhecido pelas gerações posteriores.
2. Semideus
Alguém que aprendeu com um deus e aperfeiçoou sua nova maneira de se expressar em prosa ou verso, e ajudou a difundir esse conhecimento, legitimando-o. Obviamente, semideuses são menos raros que deuses. O talento de boa parte é reconhecido imediatamente. Publicam pelas melhores editoras, ganham prêmios, são traduzidos etc. Apesar de ser menos intensa que a obra de um deus, a obra de um semideus também sobrevive à morte do autor.
3. Humano
Alguém que realiza com inegável talento o estilo literário prestigiado pela maioria dos formadores de opinião (outros escritores humanos, editores, críticos, professores, divulgadores etc.). Obviamente, humanos existem em maior quantidade do que todos os semideuses e deuses reunidos. O talento dos humanos é festejado imediatamente. Publicam pelas melhores editoras, ganham prêmios, são traduzidos etc. Mas a obra de um humano quase nunca sobrevive à morte do autor.
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[Não deviam servir vinho a ficcionistas, é um perigo. A hierarquia acima surgiu num almoço de amigos-escritores, em que falamos de mercado editorial, prêmios, críticos e editores, Proust, Joyce e Kafka, debochamos da vaidade da chamada autoficção (quem escreve autoficção precisa compreender que está correndo na mesma pista que Proust, que inventou esse negócio), classificamos Bolaño e Foster Wallace como bons humanos (iguais a muitos outros), reafirmamos que a única saída possível da crise criativa mundial é a ficção científica, única pista de corrida em que não há (ainda) Shakespeares nem Cervantes nem Prousts, Joyces e Kafkas, brindamos e nos divertimos, fizemos novas listas e classificações, sempre abençoados por Ezra Pound, é claro. Como eu disse, não deviam servir vinho a ficcionistas. In vino veritas.]
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O nome do monstro
Literatura não é apenas a arte do absurdo. É, antes de tudo, a arte do inútil. A ela só se dedica o rebotalho da humanidade. Principalmente nos dias que correm, em que já não é mais possível falar sequer de literatura didática, à maneira de Homero e Dante. Prosa e poesia a serviço da ética e do intelecto? Nevermore. Baudelaire e Joyce desbancaram a literatura a serviço de. Deus está morto — Nietzsche. Se Deus está morto, tudo é permitido — Dostoievski. Se tudo é permitido, vamos ao pacto — Klaus Mann (depois de Goethe). Literatura é o pacto xamânico com o diabo, sendo o pandemônio o último reduto do pensamento cognitivo. Literatura é morder o próprio rabo — em público. E há senhores que fazem isso há tanto tempo — às favas o pudor! — que já passaram a embolsar, sem enrubescer, altas somas de dinheiro pelo espetáculo. Literatura é pão e circo, instante em que o grotesco deixa de ser obsceno. Consequentemente, o pior vício que um escritor pode alimentar chama-se Crença na Educação pela Arte. Autoengano também é um bom nome pra essa impostura desumana. Literatura não passa de vaidade, na melhor acepção da palavra. Ainda mais quando o escritor faz pose de humilde diante das câmeras de tevê. Não se deixem enganar por tipologias de muitas faces. (Não se deixem enganar nem por mim!) De escritor há apenas dois tipos: o jovem e o velho. Segundo o senso comum (Nelson Rodrigues), o grande pecado do jovem escritor é não ter paciência de esperar pela senilidade. Quando velho, no entanto, há escritores que lançam mão de truques francamente juvenis. Também há escritores jovens que fazem pose de escritor maduro (entenda-se aqui sábio): cara de poucos amigos, cheia de empáfia, prenhe de profundidade filosófica. O escritor jovem sempre entende de literatura, mesmo quando não entende. Por isso não tem vergonha de opinar sobre os rumos da literatura de seu país, ora na imprensa, ora nas faculdades de Letras. O escritor velho, ao invés, mal se lembra das vinte e tantas regras de acentuação. Exceto os que se consideram jovens. O escritor jovem é apaixonado pelo escritor maduro que não dá entrevistas (o mesmo que desdenha de toda a raça humana e não perde a oportunidade de achincalhar os escritores que não pensam como ele). No entanto, o escritor jovem que idolatra o escritor misantropo costuma adular meio mundo e dar entrevistas sempre que pode. E nelas não perde a oportunidade de achincalhar os escritores que não professam sua fé — que não são apaixonados pelo escritor misantropo, não desdenham da raça humana e deixam passar todas as oportunidades de achincalhar os escritores que não pensam como ele. Levando-se em consideração tão-só a qualidade, há mais uma vez (malditas tipologias) dois tipos de escritor: o medíocre e o genial. O escritor medíocre é fácil de reconhecer. Basta ler duas linhas, dois versos, e lá está ele: inteiro, acabado, cheio de viço. Em cada sílaba, a mesmice juramentada. Já o escritor genial não é fácil de reconhecer. Dele não basta ler duas linhas, dois versos. Cada página, um ponto de interrogação. Será que é? Será que não é? Titubeamos linha após linha, verso após verso. Aborrecidos, deixamos sua obra de lado. Dias depois, quando tornamos a ele, mais uma vez a insegurança. Será? Trocamos impressões com os amigos — tão indecisos quanto nós — e… sim! Trata-se de vinho, não de água. Soltamos foguetes e transformamos o novo gênio em patrimônio da humanidade. Mas por que o barulho? A genialidade é um acidente biológico que não deve ser perseguido a qualquer preço. Tanto o escritor medíocre quanto o genial procuram com sua obra granjear a estima da tribo. Por isso gastam apenas parte do tempo escrevendo. A outra parte, usam para desocupar as estantes, a fim de colocar no lugar das obras do passado a sua obra. Algumas destas novas obras injetam sangue puro na cultura. A maioria, não. Mas quem se importa? Amor e morte, sexo e assassinato — os mesmos cinco ou dez textos primordiais têm sido reescritos e descartados há milênios. Descartados não, devorados. O nome do monstro? Literatura.