Vira e mexe, volta ao debate o incontornável tema das três ondas da ficção científica brasileira. Uns afirmam que esse assunto é perda de tempo, pois consideram cada autor de ontem e de hoje um universo único e irredutível, outros garantem que a periodização da FCB em ondas é muito útil principalmente no campo teórico. Estou nesse grupo.
Esquentando ainda mais o combate, há autores e pesquisadores garantindo que a Quarta Onda da FCB já começou. Disso eu não tenho certeza. Foi o artigo Amazofuturismo e cyberagreste: por uma nova ficção científica brasileira, da pesquisadora e ficcionista Lidia Zuin, que me motivou a também abrir espaço pra essa reflexão.
Nem desconfiam do que estamos falando, cara leitora, dileto leitor? Onde vocês estavam nos últimos cem anos? Tudo bem. A todos os que vivem em outro planeta e nunca ouviram falar das três ondas da FCB, segue um brevíssimo resumo:
A classificação em ondas para a ficção científica latino-americana foi proposta pelas críticas Andrea L. Bell e Yolanda Molina-Gavilán, na introdução à antologia Cosmos latinos: an anthology of science fiction from Latin America and Spain.
Essa periodização já havia sido apontada na tese de doutorado do norte-americano David Lincoln Dunbar, intitulada Unique motifs in brazilian science fiction.
Pesquisas posteriores, como as de M. Elizabeth Ginway, Ramiro Giroldo e Roberto de Sousa Causo, confirmaram a importância dessa classificação.
De modo bem grosseiro, podemos dizer que, após o período dos precursores da ficção científica brasuca, que vai de meados do século 19 a meados do século 20 — Jeronymo Monteiro, considerado o Pai da FCB, pertence a esse grupo —, a Primeira Onda (também chamada de Geração GRD) predominou nos anos 1960 e 1970. Duas editoras se destacaram: GRD e Edart. Seus principais autores foram André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha e Rubens Teixeira Scavone.
A Segunda Onda predominou nos anos 1980 e 1990. Foi a época dos fanzines, da Isaac Asimov Magazine, do Clube dos Leitores de Ficção Científica e do movimento cyberpunk.
A Terceira Onda começou nos anos 2000 e continua até hoje, com os blogues, as redes sociais, o movimento new weird, as editoras Devir, Tarja, Draco, a revista Trasgo, as pesquisas acadêmicas e os financiamentos coletivos.
É sempre bom lembrar que essas ondas não são delimitadas rigidamente. Elas se interpenetram, seu movimento é sinuoso, pra frente e pra trás na linha do tempo.
Está tudo muito bem, tudo muito bom, mas… E a famigerada Quarta Onda?
Convidei seis incansáveis ficcionistas-pesquisadores pra opinar a respeito: Lidia Zuin, Davenir Viganon, Alexander Meireles da Silva, Ana Rüsche, Ramiro Giroldo e Roberto de Sousa Causo.
Lidia Zuin
Eu apenas usei o termo Quarta Onda naquela matéria sobre amazofuturismo e cyberagreste, no UOL, por questão didática e temporal, levando em consideração uma Primeira Onda de proto-ficção científica com Machado de Assis e Dinah Silveira de Queiroz, depois uma Segunda Onda com Bráulio Tavares, Gerson Lodi-Ribeiro, Roberto de Sousa Causo e Jorge Luiz Calife, e a Terceira Onda com autores tipo Carlos Orsi e Cristina Lasaitis.
Eu vi essas classificações de Primeira, Segunda e Terceira Onda no livro da Elizabeth Ginway e no prefácio do livro Duplo cyberpunk, escrito pelo Causo. Se não me engano, no prefácio que ele escreveu pro meu livro que vai sair ainda, o REQU13M, ele também comenta algo nesse sentido. Eu uso o termo Quarta Onda pra falar de amazofuturismo e sertãopunk barra cyberagreste, por serem gêneros bem mais recentes, do fim da década de 2010, que é onde eu acho que podemos dizer que se encerrou a Terceira Onda pra começar a Quarta. Acredito que editoras como a Draco, a Estronho, a Tarja e afins fizeram parte desse momento da Terceira Onda e agora são editoras como a Wish, a Lendari, e pequenas editoras financiadas pelo Catarse e de tiragem sob demanda que estão trazendo essa nova onda de escritores tipo Fábio Kabral, Aline Valek, Lu Ain-Zaila e afins.
Não tenho certeza absoluta se essa é a melhor classificação, mas é a que eu usaria para fins didáticos em algum texto meu, porque, como você disse, Nelson, não há consenso ainda, porém é mais fácil separar assim porque eu acho que existe uma diferença entre os nomes e a estratégia de publicação do começo dos anos 2000 com os de agora. Fora que, apesar de certas ondas já terem acabado, mesmo assim temos escritores das ondas passadas ainda publicando no tempo da nova onda. Então eu penso que essa classificação é mais pra refletir talvez o modelo de negócio, os formatos e os subgêneros explorados em cada época.
Davenir Viganon
Percebemos uma onda na ficção científica apenas quando ela já está sobre nós ou quando já passou. A Terceira Onda está agora bem alta e fazendo sombra sobre nossa cabeça. É inevitável que boa parte da minha opinião-previsão-brincadeira use como fonte primordial as vozes em minha cabeça. O que é nocivo para um cientista é essencial para um artista da literatura de FC.
Se eu ignoro por um instante as vozes em minha cabeça, são poucas as evidências que consigo perceber de uma nova onda. Temos um número crescente de quantidade e qualidade de obras de FCB, é verdade, mas não há um movimento sólido de escritores que caminhem para um horizonte narrativo em comum, como o movimento cyberpunk nos EUA dos anos 1980, por exemplo. Este buscava contrapor à narrativa do herói galáctico, otimista, virtuoso e colonialista — que era praticamente um nazista, como Gibson imaginou no seu conto The Gernsback Continuum — uma FC que abordasse um futuro próximo, sujo, extremamente desigual, envolto numa tecnologia pervasiva e cheia de ruídos.
Contudo, a Quarta Onda no Brasil (agora são as minhas vozes falando) será mais parecida com um movimento, buscando uma voz brasileira que refletirá nossa experiência com a tecnologia, pelas portas dos temas da ficção científica que a tradição anglófona já abriu, aliando essa experiência particular aos caminhos abertos pelas demais vertentes de nossa literatura. A FCB já tem várias obras que se encaixarão nessa onda-movimento, mas a Quarta Onda vai torná-las apenas precursoras de algo muito mais sólido e grandioso. Obviamente, há mais desejo que previsão aqui. Sendo assim: sonhem e vacinem-se.
Alexander Meireles da Silva
Sim, já estamos na Quarta Onda da ficção científica brasileira. Sempre destacando a arbitrariedade no estabelecimento de definições para movimentos e grupos, mas aceitando o desafio aqui posto na discussão desse tema, percebo o início do que podemos considerar a Quarta Onda da FCB na década iniciada em 2011. E como ela se caracterizaria em relação à Terceira Onda, surgida no contexto da virada do século 20 para o 21, e profundamente moldada pela ascensão da Web 2.0 e a possibilidade da troca de informações e criação de conteúdos em blogs e redes sociais?
A Quarta Onda, que também poderia ser considerada uma Pós-Terceira Onda ou Terceira Onda Tardia, por aprofundar e diversificar os elementos da onda anterior, tem a inclusão e a contestação como suas maiores marcas. Se a Terceira Onda deu visibilidade à grande produção de escritoras desta vertente da literatura fantástica, a Quarta Onda traz, além das mulheres, a voz e a agenda de outras minorias, como o público LGBTQIA+ e os escritores e as escritoras negras. Coletâneas como Violetas, unicórnios & rinocerontes, da Patuá, e Afrofuturismo: o futuro é nosso, lançada pela Kitembo Edições Literárias do Futuro, são dois ótimos exemplos dessa realidade.
A Quarta Onda também vem sendo palco de debates sobre outros eixos de produção da ficção científica nacional. Tem-se aqui reflexões, por vezes tensas, sobre a histórica hegemonia literária do Sudeste e do Sul. Esse é o caso do movimento sertãopunk, conforme apresentado em Sertãopunk: histórias de um Nordeste do amanhã. Nesse quadro de novos olhares, outro movimento, o Fantasismo, busca, dentre outras coisas, destacar a importância de se enxergar a obra de ficção científica como um produto a ser divulgado e reconhecido como tal, visando assim à criação de um sólido sistema de leitores e leitoras, escritores e escritoras.
[Finaliza na próxima edição]