No longa-metragem Gattaca, de 1997, escrito e dirigido por Andrew Niccol, há uma cena em que os personagens de Ethan Hawke (Vincent) e Uma Thurman (Irene) vão a um elegante concerto de piano. No final da apresentação, o virtuose agradece pelos aplausos, lançando na direção da plateia seu par de luvas brancas. Irene recebe uma delas e mostra a seu acompanhante. A luva tem seis dedos. Na saída do auditório ela comentará com Vincent: “Você não sabia? Maravilhosa, não? Aquela peça só pode ser tocada por um pianista com doze dedos”. A cena inteira não dura mais que dois minutos, mas propõe uma pauta extensa e demorada de questões filosóficas, políticas, sociais, éticas e morais.
Guerra total de classes
O termo eugenia (do latim eugenes, que significa bem nascido) foi cunhado em 1883 pelo antropólogo e estatístico inglês Francis Galton, primo de Charles Darwin. Detalhe curioso: a palavra eugenia surgiu antes mesmo da palavra genética, criada em 1908 pelo cientista William Bateson, também inglês.
Cem anos atrás, muitos cientistas acreditavam que a raça humana pode e deve ser aperfeiçoada por meio da seleção artificial. Ou seja, evitando os cruzamentos indesejáveis e incentivando o nascimento de indivíduos socialmente mais capacitados. A eugenia é a base científica da sociedade futura apresentada no clássico Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932.
A palavra caiu em total desgraça com a ascensão e queda do nazismo, porém nas últimas duas décadas voltou a aparecer na literatura científica, meio sub-repticiamente, é claro. Não há como negar: em breve a eugenia será uma consequência direta do avanço da engenharia genética.
Então, convido o leitor a um rápido exercício de reflexão.
Imagine que vivemos numa democracia liberal, numa época em que os geneticistas já compreenderam totalmente o genoma e a hereditariedade. Agora, por meio da engenharia genética, os casais ricos podem escolher, num cardápio, as características dos filhos.
Listo abaixo cinco questões pra você, cidadão rico e bem nutrido, quando for planejar seu herdeiro ou sua herdeira:
• Qual o QI?
• Qual a altura e o peso na idade adulta?
• Quais doenças devem ser eliminadas?
• Qual a cor de pele? (Concentração de melanina. Muito clara, clara, parda ou negra.)
• Qual a orientação sexual? (Hetero, homo, bi, pan ou assexual.)
E anoto abaixo apenas uma questão pra você, cidadão pobre ou remediado:
• Como se sente, não podendo usufruir dessa nova tecnologia, não podendo dar o melhor ao seu filho?
Refletindo sobre as práticas biotecnológicas seletivas da espécie humana, ou neoeugenia, Francis Fukuyama faz a seguinte observação: “Se casais endinheirados, através da engenharia genética, tiverem a oportunidade de aumentar a inteligência de seus filhos, assim como a de todos os seus descendentes, teremos não apenas um dilema moral mas uma guerra total de classes.” (Nosso futuro pós-humano)
Felicidade programada
Os comentaristas políticos e literários costumam citar lado a lado Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, sempre que falam de narrativas sobre Estados distópicos. Sinceramente, eu considero os dois exemplos incompatíveis. A sociedade apresentada no romance de Huxley só é uma distopia quando observada de fora, pelo leitor ou pelos personagens estrangeiros que chegam sem aviso, a exemplo do Selvagem. Somente o olhar chauvinista — nosso proverbial narcisismo político e social — é capaz de enxergar um desequilíbrio nessa sociedade fundada na eugenia e no condicionamento pavloviano. Para seus cidadãos, o Estado Mundial é uma utopia verdadeira, revelando-se uma nação em que a luta de classes foi substituída pelo equilíbrio de castas, em que o proletariado, bem adaptado e satisfeito, jamais lança um olhar de desprezo ou inveja sobre a elite. Diferentemente da Oceania de Orwell, cujo lema é “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” (estratégia do cortisol), o lema do Estado Mundial é: “comunidade, identidade, estabilidade” (estratégia da endorfina). Não há conspiradores ou passeatas, ninguém deseja a renovação ou a revolução. É a perfeita e irretocável ditadura do prazer, na feliz expressão do professor Ramiro Giroldo.
O futuro é agora
Está ocorrendo no mundo uma inversão curiosa.
Sempre foi muito comum escritores buscarem inspiração nos jornais e nos livros de não-ficção, principalmente de História. Os célebres contos de investigação Os assassinatos da rua Morgue e O mistério de Marie Roget, de Poe, foram escritos a partir de notícias de jornal. Os romances Crime e castigo e O idiota, de Dostoievski, também nasceram de notícias de jornal. Entre nós, o romance Mattos, Malta ou Matta?, de Aluísio Azevedo, considerado a primeira narrativa policial da literatura brasileira, também surgiu de uma notícia de jornal. O número de ficções históricas que se alimentaram — obviamente — das páginas dos livros de história é quase infinito.
Mas agora certas situações surgidas primeiro na mente criativa de contistas e romancistas estão escapando da esfera da ficção para a seção de ciência e tecnologia de jornais e revistas.
É o que está acontecendo com os computadores, robôs e androides. Se antes eles apareciam maciçamente apenas em peças de ficção literária ou audiovisual, desde que o Deep Blue bateu o campeão do mundo de xadrez, Garry Kasparov, as reportagens e os artigos sobre inteligência artificial — centrados nos computadores, mas agora incluindo robôs e androides — foram se avolumando em toda a parte.
O mesmo pode ser dito sobre os ciborgues, que também deixaram de ser exclusividade da ficção científica. Deu na imprensa global: em 2004, o britânico Neil Harbisson foi reconhecido oficialmente como sendo o primeiro ciborgue do mundo. O primeiro homem ampliado. Em 2010, ele e a artista espanhola Moon Ribas, também uma ciborgue, criaram a Cyborg Foundation, cuja principal missão é ajudar os humanos a se tornarem organismos cibernéticos (cyborg: cybernetic organism). Atualmente há mais de duas dúzias de diferentes tipos de ciborgue circulando por aí.
Outro tema bastante comum na ficção científica, que agora já começou a ganhar espaço nos cadernos e nas revistas não de literatura, mas de ciência e tecnologia, é o estranhíssimo tema do upload mental. O bilionário russo Dmitry Itskov já avisou o planeta, por meio da imprensa e de dois congressos, que até 2045 planeja transferir sua mente para um “portador não-biológico avançado” — em outras palavras, um computador — e se tornar praticamente imortal. Segundo ele, o upload mental é o próximo passo da evolução humana. O projeto de Itskov se chama Iniciativa 2045 e tem o conhecido neurocientista holandês Randal Koene na função de diretor científico.
Veja-me se for capaz
Outro assunto bastante comum na literatura especulativa, que agora já começou a ganhar espaço também nos cadernos e nas revistas de ciência e tecnologia, é o sempre surpreendente assunto da capa da invisibilidade. Os cientistas estão estudando seriamente uma maneira de tornar uma pessoa ou um objetivo invisíveis, com o uso do chamado metamaterial. Filhote da nanotecnologia, trata-se de um material produzido artificialmente, que apresenta propriedades físicas incomuns na natureza, entre elas o índice de refração negativo. Em vez de refletir ou refratar a luz, uma capa feita de metamaterial fará a luz contornar sua superfície, tornando invisível quem ou o quê estiver sob ela. Essa premissa foi usada no romance O homem visível, de Chuck Klosterman, lançado em 2011. Fazendo o percurso inverso — da pesquisa científica pra ficção —, Klosterman conta a história de um voyeur que se aproveita de um traje de invisibilidade pra espionar bem de perto a vida mesquinha das pessoas.