Quadro fora de esquadro

“O presidente pornô” é uma sátira irresistível, delirante, sobre a tradição política brasileira: patriarcal, misógina, racista, homofóbica
Ilustração: Conde Baltazar
01/05/2024

>>>o brasil está salvo, o mundo está salvo, a bomba de expansão onírica explodiu ao meio-dia na praça dos três poderes em brasília, a onda de choque continua se propagando a mil quilômetros por minuto, a partir de hoje tudo será sonho, apenas sonho, nada mais que sonho

>>>o pensamento parecia pegar fogo sem estar em chamas, näo de verdade. quem sabe {realmente} o que ë uma folha, um ramo? quem sabe {realmente} como funciona essa mäquina chamada ärvore? conheci pessoalmente hilda hilst e seus noventa e nove cachorros oceânicos… foi num sonho lücido. passeävamos nos limites de um bosque vermelho-verde, procurando evidëncias do pouso recente de um disco voador. näo encontramos quase nada. mas na volta pra casa o sussurro sub-reptício de entidades sobrenaturais, certamente do alëm-tümulo, nos convidaram para uma festa da meia-noite que aconteceria no final de semana, de säbado pra domingo. aceitamos & agradecemos. na mesma ëpoca tambëm conheci roberto piva e seus extravagantes arabescos xamänicos… dessa vez näo foi num sonho lücido. estävamos todos bem despertos, atentos a tudo o que abrasava nossos limites. foi no encerramento de um de meus ateliës de criaçäo literäria na casa mario de andrade. a ünica entidade sobrenatural presente era o pröprio mario macunaíma, em espírito. o pensamento parecia pegar fogo sem estar em chamas, näo de verdade. quem sabe {realmente} o que ë uma pägina, um livro? quem sabe {realmente} como funciona essa mäquina chamada incëndio?

{Questão fundamental ainda não respondida}

>>> Deus tem cu?

Hilda Hilst > A obscena senhora D

>>>O presidente pornô, de Bruna Kalil Othero, narra as peripécias do obsceno & espetacular {no pior sentido da palavra} Bráulio Garrazazuis Bestianelli, mandatário do glorioso & escrachado Plazil. O romance é uma sátira irresistível, delirante, da melhor qualidade, sobre a tradição política brasileira: patriarcal, misógina, racista, homofóbica. A linguagem foge totalmente da velha herança realista-naturalista, essa erva-daninha invencível, ainda tão presente na literatura brasileira contemporânea. Bruna Kalil Othero dialoga com o melhor da tradição iconoclasta brasuca: a tradição de Machado de Assis, Oswald de Andrade, Hilda Hilst e Nelson Rodrigues, entre outros. Por meio do humor, a autora denuncia & ridiculariza estereótipos, preconceitos & dogmas, comprovando que o sorriso e o riso, quando usados com habilidade, são as armas mais eficazes contra todos os tipos de injustiça. O presidente pornô é um exemplo recente, necessário, de literatura-vingança contra as forças opressivas da sociedade.

>>>Franz Kafka, aquele safadinho chegado numa putaria, é o criador da ficção-tecnocracia, das histórias ambientadas num Universo-Estado corporativo, administrativo, burocrático, totalmente indiferente aos anseios humanistas dos humanos que o habitam.

As páginas de O castelo, escritas em 1922, foram reunidas & lançadas postumamente em 1926. Constituem metade do romance, de acordo com o projeto do autor.

Aprecio bastante a maneira que três autores geniais reescreveram as ficções-tecnocracia de Kafka.

Borges: A biblioteca de Babel, 1941.

Lem: Memórias encontradas numa banheira, 1961.

Miéville: A cidade & a cidade, 2009.

{Brazil, 1985, filme de Terry Gilliam, também merece figurar nesta lista}

Depois de quarenta anos, estou relendo Memórias encontradas numa banheira… Stanislaw Lem era phoda. Ele conseguiu parodiar-transformar o pesadelo kafkiano do Castelo numa tragicomédia futurista viciante, ambientada numa bizarra fortaleza militar chamada A construção.

>>>pensando bem, nenhum grande livro mudou minha vida, porém minha vida mudou muitos grandes livros

{Rubão, divisor de águas}

>>>considerando o uso do discurso direto {diálogos} na ficção, há dois tipos de ficcionistas:

— os que organizam os diálogos de acordo com a gramática, usando dois pontos e travessão {ou aspas}. é a galera pré-Feliz ano novo, de Rubem Fonseca

— e os que organizam os diálogos eliminando os dois pontos, o travessão {ou as aspas}. é a galera pós-Feliz ano novo, de Rubem Fonseca

{Feliz ano novo, conto de Rubem Fonseca presente na coletânea homônima, de 1975}

esse é o critério de desempate, aqui em casa. sempre que surgem dois ou mais romances disputando minha atenção, eu vou direto nos romances {ou nas coletâneas de contos} da galera do segundo grupo

>>>Se você se considera um jedai da literatura brasileira mas não sabe exatamente quem é Ademir Assunção, perdão, meu jovem padawan, mas você ainda não é um jedai da literatura brasileira, precisa estudar mais… Ademir Assunção é autor de quase duas dúzias de livros dukaralho, sendo os meus prediletos A máquina peluda {contos}, Zona Branca {poemas}, Adorável criatura Frankenstein {romance} e Pig Brother {poemas}. O famigerado psicolérico foi um dos editores da lendária revista Coyote, alguém que conviveu com Paulo Leminski, Caio Fernando Abreu & Itamar Assumpção, entre outros gigantes… Então, ó minhas irmãs, ó meus irmãos, um e-mail enviado por um transgressor desse calibre não é uma granada que eu guardaria em segredo. É uma bomba de efeito moral pra ser detonada em público. Explodam-se comigo.

UM GÊNIO ENTRE NÓS
Há muitas décadas Oswald de Andrade avisou: viva a rapaziada, que o gênio é uma grande besteira. É bem provável que o antropófago sempre esteve absolutamente certo. Mas mesmo as afirmações mais cristalinas têm exceções. Temos um gênio entre nós. Um gênio discretíssimo, que abandonou todas as ilusões a respeito daquilo que a espécie mamífera conhecida pelo nome de sapiens costuma chamar de realidade (Maya, para os antigos sábios hindus) e criou a Grande Conexão, realizada pelo menino-menina chamado Eu. A menina-menino do coração de cristal, que driblou demônios curupiras, gurus vigaristas, militares truculentos, estupradores indecentes, cientistas inescrupulosos, empresários salafrários, e uma legião de seres fantásticos, para realizar seus benéficos intentos, antes que as megacorporações de Matrix fodessem tudo com seus maléficos intentos. Este gênio chama-se Olyveira Daemon e escreveu o livro Gigante pela própria natureza (e esta não é sua única demonstração de genialidade). Há outras-outros. Procure, leitor preguiçoso, que eu não estou aqui para entregar tudo de bandeja. Perto deste livro, com sua narração móvel, ritmo alucinante e imaginação sem limites, quase tudo o que se escreve hoje em dia — e atende pelo nome de romance — parece antiquados bocejos da pré-história literária, vastíssimo período pré-Grande Conexão, asfaltado por psicologismos baratos ou raros, sociologismos agudos ou ralos, ancestralismos picaretas ou porretas, realismos engenhosos ou enfadonhos. Não tenho certeza se Gigante pela própria natureza existiria se Dom Quixote (Cervantes), Matadouro 5 (Vonnegut), O guia do Mochileiro das Galáxias (Adams), Agora é que são elas (Leminski) e PanAmérica (Agrippino) não tivessem existido. Talvez sim. Porque Olyveira Daemon parece ter vindo de outra galáxia literária. Porém, certamente leu os livros citados — e alguns outros (não tantos) oriundos de outras galáxias literárias, que prepararam o terreno para a Grande Conexão. Porém, agora que o fato está consumado, todos os 14 bilhões de anos que nos separam do Big Bang não passam do ínfimo instante do espirro de uma pulga. E outras pulgas provavelmente continuarão espirrando sabe-se lá por quantos bilhões, trilhões ou infinitos zilhões de anos após o planeta conhecido como Terra, nos dias de hoje, ter entrado em colapso e se tornado um buraco negro, um pozinho de pyrlimpimpim que não provoca nem cócegas no ilimitado Universo-Universa.

Ademir Assunção

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho