Querido poeta:
Na divertida Nova poética, você afirma que
>O poema deve ser como a nódoa no brim:
>Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero
Agora eu discordo totalmente, meu comparsa
Principalmente porque não existe essa criatura mitológica: o leitor satisfeito de si. Todos os leitores, toda a espécie humana sempre esteve mergulhada no desespero
Prefiro mil vezes quando você repete, em outro lugar, que vai-se embora pra Pasárgada
Afinal, entre tantas vantagens
>Lá a existência é uma aventura
>De tal modo inconsequente
>Que Joana a Louca de Espanha
>Rainha e falsa demente
>Vem a ser contraparente
>Da nora que nunca tive
{…}
>Em Pasárgada tem tudo
>É outra civilização
Papo reto, meu poeta: mais liberdade & libertinagem e menos, muito menos nódoas desesperadoras no brim branco
Sou contra os personagens vítimas do sistema
Estou farto da literatura do tipo moedor de carne
Os pobres no moedor de carne
As mulheres no moedor de carne
Os pretos e os pardos no moedor de carne
Os indígenas no moedor de carne
Os gays e as lésbicas no moedor de carne
As crianças no moedor de carne
Os coitadinhos dos poetas no moedor de carne
Os perseguidos pelo Regime Militar no moedor de carne
Os virtuosos ecologistas no moedor de carne
Estou farto do moralismo dessa literatura da catástrofe
Estou farto do fetiche da morte, dessa perversão em prosa ou verso que se compraz em jogar na minha cara o sangue, as fezes, os ossos e os gritos dos pobres-diabos triturados pelo moedor de carne da estupidez humana
Estou farto porque são e sempre serão pobres-diabos de tinta & papel
Não são nem de longe os pobres-diabos da vida real, da náusea cotidiana
Nesses livros viciosos, o sangue, as fezes, os ossos e os gritos são apenas efeitos retóricos
Apenas artimanhas semânticas
ca, artimanha por artimanha, prefiro a retórica e a artimanha dos sustos cosmogônicos, da força do impulso vital
Eu quero a literatura do fetiche da vida, eu quero a prosa e o verso que se comprazem em jogar na minha cara a malícia, a sagacidade, a libido e a malandragem de uma sociedade sem culpa, de um universo sem nenhum traço de puritanismo, de um espelho que me revele não necessariamente uma terra sem males, mas uma terra sem pecados, uma terra em transe passional, uma terra em que todos os males são enfrentados com uma naturalidade juvenil e uma neutralidade moral comoventes, encantadoras
Grandeza do sofrimento?
Redenção pela dor?
Quaquaquá, papo-furado pra boi dormir
Arriba arriba, ándale ándale! Un pour tous, tous pour un!
Repito: sou contra os personagens vítimas do sistema, vítimas de remorsos & repressões interiores
Nem totem nem tabu, herr Sigmund!
Nem apocalípticos nem integrados, signore Umberto!
O que eu quero?
Eu quero a literatura que responda vigorosamente, ferozmente, a seguinte pergunta: como seria a sociedade brasileira se ela fosse puramente Eros, pulsão de vida, sem nenhum traço de superego?
Eu quero a literatura que responda vigorosamente, ferozmente, a seguinte pergunta: como seria a sociedade brasileira se ela fosse mais allegro vivace e mais allegro assai e menos, muito menos adagio assai e menos, muito menos adagio sostenuto
Mais O carnaval de Arlequim e menos, muito menos Guernica
Mais Elogio da loucura e menos, muito menos Malleus maleficarum
Mais Memórias inventadas, muito mais Memórias inventadas de Manoel de Barros
Mais Deus: essa gostosa, muito mais Deus: essa gostosa de Rafael Campos Rocha
Eu quero a literatura das escapadas espetaculares: Capitu, Bentinho e Escobar, e Riobaldo, Diadorim e a Escrava Isaura, e Peri e Ceci e o protagonista do conto O cobrador, e Policarpo Quaresma e Paulo Honório e Macabéa, e Pombinha e Naziazeno e a cachorra Baleia, é claro… todos dando uma banana para os melodramáticos escritores, todos fugindo num dirigível steampunk rumo às praias afrodisíacas das Ilhas Maldivas, administradas por Gabriela Cravo e Canela & Tieta do Agreste
Papo reto, meu poeta:
>>>Eu quero ler ficções & poemas sobre uma organização secreta de crianças pequenas que combatem o tráfico sexual de meninas & meninos transformando todos os pedófilos em bonecos de sorvete ou gelatina ou chocolate
>>>Eu quero ler poemas & ficções em que a potência irreprimível da imaginação e da fantasia seja o arsenal militar mais sofisticado, mais irreverente, capaz de derrubar nefastas organizações políticas & sinistros estados totalitários
>>>Eu quero ler ficções & poemas sobre mulheres que se defendem de agressores & estupradores se teleportando para uma formidável cidadela nas nuvens ou para um maravilhoso reino submarino totalmente matriarcal
>>>Eu quero ler poemas & ficções sobre medos & fobias transformados em pedras preciosas de beleza irresistível, sobre angústias & desejos convertidos em talismãs sagrados capazes de gerar energia limpa infinita
>>>Eu quero ler ficções & poemas em que o racismo seja uma doença de pele que provoca no corpo do racista o aparecimento de pequenas lâmpadas pisca-piscando freneticamente e uivando feito uma coleção de sirenes tresloucadas
>>>Eu quero ler poemas & ficções em que expressões idiomáticas & substantivos abstratos ganhem corpo & consciência e sejam tratados como personagens de carne & osso, afinal a poiesis pode tudo e não deve ficar presa às mesquinhas leis da realidade extraliterária
>>>Eu quero ler ficções & poemas em que a pobreza e a fome extremas sejam um Godzilla feito de ódio reprimido destruindo civilizações inteiras, um monstro descomunal que só poderá ser domesticado por outro monstro descomunal: o amor desmedido
>>>Eu quero ler poemas & ficções em que o tempo e o espaço sofram subversões alopradas, em que os fatos sejam narrados de trás pra frente e as residências sejam maiores dentro do que fora
>>>Eu quero ler ficções & poemas repletos de neologismos & palavras esdrúxulas, mantras & encantamentos profanos de todas as cores & sabores
>>>Eu quero ler poemas & ficções em que o velho carnaval se transforme numa realidade paralela de longa duração, uma festa infinita em que pessoas vivas & mortas, livres da força da gravidade, se encontrem pra celebrar o delirante mistério da existência
>>>Eu quero ler ficções & poemas em que plantas, minerais, fungos, animais & humanos se entendam telepaticamente, em que a devastação do planeta seja interrompida por uma explosão orgástica de proporções apocalípticas
>>>Eu quero ler poemas & ficções em que realidade, imaginação & fantasia se misturem de maneira quente & luminosa, permitindo a todas as sombras & reflexos que se libertem da opressão das leis da física
>>>Eu quero ler ficções & poemas em que as pessoas transem muito, loucamente, em segurança absoluta, em que o gozo, o riso e o sorriso sejam a nova moeda forte na economia mundial
>>>Eu quero ler poemas & ficções sobre generosos seres misteriosos invisíveis maiores que os edifícios, maiores que as cidades, quem são, de onde vieram, onde vivem, o que desejam
>>>Eu quero ler ficções & poemas em que Pantagruel & Gargântua desembarquem na floresta Amazônica e confraternizem afetuosamente com as entidades mágicas ancestrais numa cerimônia de ayahuasca & canções sagradas
>>>Eu quero ler poemas & ficções em que as megalópoles ganhem consciência & autonomia e comecem a se deslocar pelos continentes, se perseguindo e acasalando e gerando descendentes