Querido poeta:
Num de seus momentos mais lúcidos, de saco cheio, enfastiado, você esbravejou:
>Estou farto do lirismo comedido
>Do lirismo bem comportado
>Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor
>Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
>Abaixo os puristas
Também estou farto, meu poeta
Ai ai minha Mãe Celestial
Que arte pesarosa é essa?
Que literatura lacrimosa é essa?
Tomanucu
Estou farto da tristeza modorrenta
Da tristeza dramática
Da tristeza trágica que envenena nossa consciência a conta-gotas
Noticiário
Literatura
Teatro
Cinema
Televisão
Drama drama drama drama
Tragédia tragédia tragédia tragédia
Drama tragédia drama tragédia drama tragédia drama tragédia
Caraleo, estou farto de tanto drama onanista, de tanta tragédia oportunista
É traumaaaaaa que não acaba mais, povo de Pyndorama!
Todo o mundo, o mundo todo, toda a gente agora é o Batman na arte e na literatura brasileiras
Todo o mundo, o mundo todo, toda a gente agora é o coitadinho do Bruce Wayne
Um órfão dramático, trágico, traumatizado, sombrio, lúgubre, amargurado, que não sabe o que é alegria, que não goza nunca
Vão sifudê, seus broxas
Abaixo os pessimistas
Eeeh-laaa-eeeh, laaa-laaa-eeeh, eeeh-laaa-hooo!
A literatura do trauma, hegemônica, totalitária, em metástase, está se tornando o trauma da literatura
Está faltando alumbramento, meu Poeta do Alumbramento
Está faltando amor-humor
Principalmente amor-humor
Pulsão de vida, pourra!
A ideologia que move a literatura brasileira é uma ideologia negativa, uma engenhosa engenharia deprimida a serviço de experiências depressivas
Ninguém canta ou dança gostoso
Risos & sorrisos gozosos?
Nem sinal
Ninguém goza na prosa e na poesia brasileiras, nem mesmo nas cenas de sexo
O que ocorre nas cenas de sexo são uns espasmos cansados, uns espasmos sem luz, uns espasmos que não libertam, não alegram, não transportam pra lugar algum
Uns espasmos maquínicos, neuróticos, obsessivos-compulsivos
Fome que não sossega, sede jamais saciada
As doooores do patriarcado
As doooores do colonialismo
As doooores do racismo
As doooores da homofobia
As doooores do feminicídio
As doooores do abuso infantil
As doooores da violência doméstica
As doooores do genocídio
As doooores das doenças do corpo e da mente
As doooores do fanatismo religioso
Do fanatismo político
Do fanatismo econômico
Do fanatismo corporativo
As dores as doores as dooores as doooores
Quantaaaaaa doooooooooooor, meu poeta!
É traumaaaaaa que não acaba mais, povo de Pyndorama!
Putaquipariu, estou farto dessa literatura que só enxerga a dolorosa merda humana
Dessa literatura que põe a bosta no microscópio
Dessa literatura que fica futucando com um graveto os muitos cocôs da sociedade
Dessa literatura do tipo análises clínicas, exame de fezes
Você lê a prosa trágica de Fulana de Tal e pensa, nossa, coitada, que miséria material, essa mulher deve morar embaixo de um viaduto, essa mulher deve feder, essa mulher deve estar cheia de carrapato, quando será que ela tomou banho pela última vez?
Você lê a poesia dramática de Beltrano de Tal e pensa, nossa, coitado, que miséria espiritual, esse homem deve pegar comida no lixão, esse homem certamente já perdeu todos os dentes, esse homem deve ter gonorreia e outras mil doenças, quando será que ele amou pela última vez?
Quantaaaaaa doooooooooooor, meu poeta!
É traumaaaaaa que não acaba mais, povo de Pyndorama!
Mas, esperem… É tudo um fingimento?
Fulana de Tal e Beltrano de Tal são limpinhos, cheirosinhos, alfabetizados e bem nutridos?
Ela sempre morou em Higienópolis e costuma passar as férias em Paris?
Ele sempre morou em Copacabana e agora está fazendo pós-graduação nos Estados Unidos?
Escrevem essa literatura sorumbática, baixo astral, essa desgraceira infinita, porque o zeitgeist e o mercado exigem?
Dramas & mágoas & tragédia & desesperos vendem bem, ganham prêmio?
A realidade não é mesmo uma bosta?
Arte & literatura não devem espelhar a realidade?
Então façamos arte & literatura sobre a vida-bosta, com personagens-bostas em situações-bostas?
Ah, mas o escritor é um fingidor…
Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente?
Então, vamos fingir um pouco de alegria, meus nobres fingidores
Diante do formidável mistério da existência, mais eros e menos tanatos, por favor
Diante do indescritível mistério da existência, mais amor fati e menos niilismo, caraleo!
Chega de absurdos burocráticos à maneira do senhor Kafka, eu quero a exuberância colorida do senhor Rabelais
Chega de alegorias grotescas à maneira do senhor Beckett, basta de Estragons & Vladimires, eu quero a malandragem tropicalista sem nenhum caráter do senhor Macunaíma {mas sem aquele broxante desenlace melancólico, por favor}
Putaquipariu, chega de recorrentes & sinistras banalizações do mal
Chega de distopias torturantes, derrotistas
Desenganos & desilusões? Tou fora
Hora de reivindicar mais Emílias & Carlitos & Pedro Malasartes & Leonardos {Memórias de um sargento de milícias} & Píppi Meialongas & João Grilos e Chicós & Chalaças & Policarpo Quaresmas {mas sem aquele broxante desenlace trágico, por favor} & Ricardinhos {Tanto faz} & Lori Lambys & Meninos Maluquinhos & Amelie Poulains e menos, muito menos Édipos & Hamlets & Faustos & Raskolnikovs & Madames Bovarys & Condes de Monte Cristo & Cidadãos Kanes & Bentinhos & Lex Luthors & Riobaldos & Paulo Honórios & Macabéas et cétera et cétera
Abaixo os amargos, os pessimistas
Quando contaminado pelo pessimismo, quando corrompido pelo drama ou pela tragédia, o insólito-surrealismo do tipo delirante também se torna um tumor venenoso, um câncer tão perverso quanto o realismo-naturalismo do tipo mundo-cão
Hora de reivindicar mais fortúnios nas desventuras e menos infortúnios nas venturas, por favor
Está faltando alumbramento, meu Poeta do Alumbramento
Está faltando amor-humor
Principalmente amor-humor
Pulsão de vida, pourra!
Eeeh-laaa-hooo, laaa-laaa-hooo, eeeh-laaa-eeeh!
O que eu quero?
Eu quero a literatura-exaltação, meu querido
Eu quero a prosa e a poesia que celebram a existência, a imaginação, a liberdade, o cosmos, o riso e o sorriso por meio de uma linguagem arrebatadora
Eu quero o entusiasmo dos novos Walt Whitmans, o júbilo dos novos Álvaro de Campos
Eu quero mais, muito mais, mandem pra mim os pequenos êxtases dos novos Manoel de Barros, as mínimas epifanias dos novos Mario Quintanas
Tomanucu, quantas vezes terei que repetir?
Eu quero a gaia ciência dos novos Zaratustras, o acaso objetivo & o amor louco dos novos André Bretons, as vibrantes criaturas oníricas soltas em novos Peixe solúvel
Eu quero as assombrações benévolas dos novos Murilo Mendes e o caleidoscópio de cores & sabores dos novos Ricardo Soares, o delirante fluxo-refluxo girando em novos Cinevertigem
Acima de tudo, eu quero que nossa literatura — ao menos uma parte dela — volte a ser uma embriagante festa pra inteligência
Menos Hardy Har Har e mais Lippy o Leão, please
É pedir demais?
O mundo está à beira do abismo?
Putamerda, nada de novo sob o sol, o mundo sempre esteve à beira do abismo, então, uuuh aaah, MENOS, muito menos Hardy Har Har e MAIS, muito mais Lippy o Leão, peeer favoreee
Menos Ratinho-Datena e mais Dercy Gonçalves