Precisamos falar sobre o valor estético

O valor estético é algo impossível de ser provado?
O filósofo Immanuel Kant
02/02/2016

O valor estético é algo impossível de ser provado.
Pausa pra respirar.

Como uma oração tão simples pode ser tão perturbadora?

Comecemos novamente:

O valor estético é algo impossível de ser provado.
Que absurdo! Quem soltou essa barbaridade?

Dizem que o primeiro a afirmar isso, de maneira bem mais complexa, foi Immanuel Kant, em sua Crítica da faculdade do juízo.

Kant queria muito que a estética fosse uma ciência: a ciência do belo. Queria que a mesma pintura e o mesmo poema fossem admirados ou desprezados por razões objetivas, lógicas, universais. Assim, seria possível provar racionalmente que determinada pintura é uma obra-prima enquanto outra não é, que determinado poema é uma obra-prima enquanto outro não é.

Ao perceber que o valor estético é algo impossível de ser provado, Kant logo viu que essa premissa destruía qualquer possibilidade de uma crítica científica da arte e da literatura. Isso o aborreceu.

Ele até tentou salvar as aparências, afirmando que o juízo estético busca a universalidade por meio do convencimento, da persuasão. Ou seja, mesmo sendo subjetivo, o gosto se discute. Pra determinar se tal obra é boa ou ruim, as pessoas devem se reunir e debater exaustivamente. Exatamente como na política e na religião. Dessa conclusão acaba de surgir uma oração mais simples ainda:

O valor estético é estatístico.
Logo, são boas as obras que a maioria disser que são boas, são ruins as obras que a maioria disser que são ruins. Aí está a universalidade do juízo estético: no gosto da maioria, na tendência ao consenso, à unanimidade.

Vejam o absurdo da situação. Para a pergunta “Por que A divina comédia é uma obra-prima?” a resposta mais honesta é “Porque a maioria afirma que é”.

Mas é óbvio que nenhum teórico da literatura escreveu ou escreverá isso. Cadê a elegância? Cadê a perspicácia? Para prender a atenção da audiência, pra convencer e persuadir, a retórica do texto crítico exige malabarismo, prestidigitação, metáforas e metonímias.

Os teóricos da literatura não precisariam tanto desses recursos estilísticos se pudessem lançar mão do método científico… Mas o professor Kant já avisou em bom alemão: não podem, não podem mesmo, o juízo estético, o sentimento de beleza, esse é subjetivo, individual, ele não tem nada a ver com o raciocínio lógico.

O juízo “Esse objeto é belo” exprime um sentimento de prazer: “Esse objeto me agrada”. Por isso sua demonstração jamais se apoiará em provas objetivas.

[Mas, atenção: quando dizemos “Esse objeto é belo” isso não significa que a beleza esteja no objeto, que seja uma propriedade objetiva sua. Segundo o pensador de Königsberg, uma pintura ou um poema não são belos em si. O sentimento estético ocorre em nós, em nossa consciência, ao contemplarmos a pintura ou apreciarmos o poema. Nessa circunstância, “Esse objeto me agrada” é a expressão mais sensata.]

Ao perceber que o valor estético é algo impossível de ser provado, Kant logo viu que essa premissa destruía qualquer possibilidade de uma crítica científica da arte e da literatura. Isso o aborreceu.

O valor estético é estatístico.
Voltemos à terrível afirmação acima — sobre a legitimação do bom e do ruim por meio do debate exaustivo —, fazendo a incômoda pergunta: apreciamos tanto certa obra de determinado artista ou escritor (por exemplo: Mona Lisa ou Ulysses, Abaporu ou Dom Casmurro) porque essa obra provoca em nós um verdadeiro sentimento de beleza ou porque fomos convencidos pelo consenso a apreciar essa obra?

A resposta é fácil: apreciamos a Mona Lisa ou Ulysses, o Abaporu ou Dom Casmurro porque fomos convencidos pelo consenso, e não há vergonha alguma nisso, afinal a apreciação da arte e da literatura não ocorre espontaneamente, ela exige educação (críticos e professores, palestras e aulas, artigos e livros).

O problema é o cinismo e o oportunismo tão nossos, tão humanos, cuidadosamente disfarçados de pureza e integridade. O consenso sobre o bom e o ruim na arte e na literatura nasce do debate, mas frequentemente os debatedores não são espíritos desinteressados.

Como na retórica da política e na da religião, também na retórica da estética o pensamento de grupo, o efeito adesão e o viés da autoconveniência são os vícios mais comuns. Relembremos as principais tendências de nossa mente durante um debate:

1. Viés de confirmação: tendemos a dar ouvidos somente aos argumentos que apoiam nossa crença, por mais absurdos que sejam.

2. Pensamento de grupo: por medo de sofrer uma represália, tendemos a trocar nossa crença pela crença de todos ao nosso redor.

3. Efeito adesão: tendemos a acreditar em algo, sem pestanejar, apenas porque muitas outras pessoas também acreditam.

4. Viés de autoconveniência: pra não perder um benefício (amizade, emprego, prestígio), tendemos a aceitar a crença do nosso grupo social, profissional, etc.

5. Cascata de disponibilidade: quanto mais uma crença é repetida pela opinião pública, mais tendemos a aceitá-la como verdadeira.

6. Simplificação do problema: diante de qualquer questão polêmica, tendemos a tomar partido rapidamente, sem analisar todos os argumentos.

7. Problema de calibração: tendemos a acreditar que somos mais sensatos e inteligentes que a maioria.

8. Ilusão de controle: tendemos a acreditar que podemos controlar o resultado de eventos aleatórios (essa é a base das superstições).

Esses vieses cognitivos, tão comuns nas discussões políticas e nas religiosas, infelizmente também dominam as discussões sobre arte e literatura. Principalmente os de número dois, três e quatro.

De que maneira o pensamento de grupo, o efeito adesão e o viés de autoconveniência moldam nossa apreciação artística e literária? Um exemplo: se você é um jovem ambicioso, que deseja uma carreira bem-sucedida no jornalismo cultural, no mundo acadêmico ou editorial, você logo notará que respeitar e disseminar o consenso costuma trazer mais satisfação que dissabor.

O prazer estético é um sentimento desinteressado, puro.
Verdade. Mas as instâncias que legitimam e propagam o trabalho artístico e literário — academia, universidade, imprensa, crítica, mercado editorial, premiações, etc. —, por outro lado, têm muitos interesses corporativos e comerciais. Afinal a arte e a literatura também são atividades sociais.

O prazer estético é um sentimento desinteressado, puro, mas a arte e a literatura não são atividades desinteressadas.

São atividades impuras, comprometidas, como qualquer outra numa economia de mercado. Sua produção e seu consumo estão sujeitos às mesmas regras do hegemônico sistema capitalista. Pierre Bourdieu escreveu muito sobre essa dinâmica altamente competitiva, ao tratar do campo de batalha artístico e literário.

O problema é que as instâncias que legitimam e propagam o trabalho artístico e literário — academia, universidade, imprensa, crítica, mercado editorial, premiações, etc. — escamoteiam essa verdade inconveniente.

Essas instâncias levam o senso comum e a opinião pública a acreditar que a beleza está no objeto, que é uma propriedade objetiva sua, como acreditavam Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e outros.

Essas instâncias levam o senso comum e a opinião pública a acreditar que tudo depende do modo correto de avaliar a arte e a literatura: se todos nós julgássemos corretamente, todos nós acharíamos belos ou toscos as mesmas obras de arte e os mesmos livros.

O valor estético é algo impossível de ser provado.
O valor estético é estatístico.
Mas no ensino médio, na imprensa, em toda a parte os professores, os jornalistas e os demais formadores de opinião continuam escamoteando a subjetividade do gosto, continuam se passando por donos da verdade estética. Seu salário e seu prestígio dependem disso.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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