Por que perder tempo com literatura quando há tanta coisa melhor pra gente fazer?

A arrogância do mundo livresco tem certeza de que os indivíduos que não cultivam o hábito da leitura são criaturas espiritualmente aleijadas, humanos pela metade
Ilustração: Isadora Machado
02/01/2021

Cada indivíduo é sua própria medida de todas as coisas.
Protágoras de Abdera

Cada um delira conforme sua história.
Maria Balé

Conheço muitas pessoas que não apreciam literatura de espécie alguma. Há também os que jamais cultivaram o hábito da leitura de qualquer tipo de livro: biografia, História, jornalismo, divulgação científica, filosofia, religião, etc. Dinheiro não é o problema. São parentes e amigos que nunca leem livros e raramente leem jornal e revista simplesmente porque, em sua opinião, a leitura não lhes acrescenta nada, é tediosa.

Tenho certeza de que vocês também conhecem pessoas com esse perfil. Afinal, em nosso país, metade das pessoas alfabetizadas são não-leitoras, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Estamos falando hoje de cinquenta milhões de seres humanos.

Eu costumava ter pena dessa gente. Ficava imaginando como devia ser pobre e triste sua existência sem o prazer arrebatador que a leitura de qualidade sempre proporciona.

Sempre?

Hoje eu percebo que faz parte da arrogância do mundo livresco e dos leitores apaixonados a certeza de que os indivíduos que não cultivam o hábito da leitura são criaturas espiritualmente aleijadas, humanos pela metade.

Preconceito estúpido, igual a qualquer preconceito.

Conheço pessoalmente muitos exemplos — tenho certeza de que vocês também — de não-leitores inteligentes, íntegros, criativos, ou seja, de indivíduos espiritualmente completos, cuja cultura não-livresca se alimentou e se alimenta em outras áreas: música, cinema, televisão, rádio, tradições populares e principalmente do convívio intenso com outras pessoas.

Que a cultura livresca não é sinônimo de um caráter nobre e incorruptível, isso eu já sabia. A História está cheia de calhordas e sociopatas proprietários de uma grande biblioteca, acostumados a muita leitura. (O comportamento atávico dos imbecis livrescos ainda precisa ser estudado em laboratório.)

Mas na juventude eu estava convencido — porque o senso comum me convenceu, é claro — de que todas as formas de arte fertilizam a sabedoria, mas a sabedoria jamais germina, se desenvolve e dá frutos sem a ajuda dos melhores livros. Nessa época eu estava no caminho certo pra me tornar um legítimo imbecil livresco.

Quando comecei a prestar mais atenção nas pessoas sábias que não apreciam a leitura, muito menos a literatura de espécie alguma, em minha mente soou um alarme.

Quer dizer que na formação de pessoas sábias os livros não são fundamentais? Para quem sempre amou os livros, para quem passava de seis a oito horas diárias lendo livros, no início essa constatação me abalou bastante. Ela abriu meus olhos para um fato espantoso: o Brasil não é um país de leitores. Muito menos de leitores de literatura. Muito menos de leitores de literatura brasileira. E no dia a dia, a maior parte das pessoas que eu admiro pela inteligência e integridade não se interessa por livros, muito menos por literatura.

O inconveniente de aceitarmos essa premissa é que ela pode se tornar o primeiro dominó que irá derrubar os demais.

Se na formação de pessoas sábias os livros não são imprescindíveis, por que o livro e a leitura ainda estão no centro da concepção oficial de sociedade civilizada? Por que os colégios e as faculdades ainda giram majoritariamente em torno de livros, e não das mídias audiovisuais? Por que a literatura ainda é tão valorizada, se na hora de escolher uma atividade cultural as pessoas preferem escutar música e assistir a filmes e séries?

Ironicamente, eu ainda não estava metido nesse labirinto de interrogações quando me afastei dos livros. Aconteceu sem que eu percebesse. Comecei a passar mais tempo assistindo a aulas e palestras no YouTube do que lendo livros. Pouco a pouco as muitas horas de leitura foram ocupadas por séries e filmes da Netflix, músicas de todos os gêneros no Spotify e idas constantes a museus, cinemas, teatros e salas de concertos.

Literatura? Zero. Nada de romances, nada de coletâneas de contos, crônicas ou poemas…

Cruzada radical
Estamos de acordo que o livro e a literatura não são essa entidade fundamental que a cultura livresca insiste em disseminar? Essa entidade espiritual sem a qual não haveria a plena realização humana?

Ótimo. Então estamos de acordo que nossa sociedade adulta pode ser dividida em dois grupos: pessoas apaixonadas, viciadas, que necessitam da literatura pra viver, e pessoas que não necessitam dessa substância psicodélica.

Agora eu já posso responder a pergunta-título deste artigo.

A resposta é muito simples.

A essência de todas as artes é irredutível e intraduzível. Nenhuma arte tem o poder de substituir, de proporcionar o mesmo prazer estético que as outras. A pintura tem uma essência que somente a pintura consegue expressar. A escultura, a música, a dança, o teatro, o cinema idem. Nós, que amamos tanto a literatura, somos viciados no prazer estético que somente o fluxo verbal de um bom romance, um bom conto, uma boa crônica ou um bom poema consegue proporcionar. Fluxo verbal impossível de ser adaptado em qualquer outro meio de expressão, sem que uma parte de sua identidade genética seja perdida ou corrompida.

A melhor adaptação para o cinema de qualquer romance interessante fatalmente deixará de fora parte da essência desse romance. Justamente aquela parte irredutível que só pode ser expressa pela linguagem verbal.

A verdade da literatura é que há poderosas experiências estéticas que só se realizam num romance, num conto, numa crônica ou num poema. E a verdade de nossa paixão pela literatura é que nossa saúde intelectual e emocional necessita dessas poderosas experiências estéticas para se manter saudável.

“Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como ocorria na adolescência, que me preservasse das feridas que eu poderia sofrer nos encontros com pessoas reais. Em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências, e me permite melhor compreendê-las.” (Tzvetan Todorov, A literatura em perigo)

Mas a literatura não é uma necessidade universal, uma constante absoluta, como apregoa a comunidade livresca. Se outras pessoas conseguem preservar sua saúde intelectual e emocional sem o intercâmbio íntimo com esse tipo específico de experiência estética, sem o jogo constante com a literatura, interagindo apenas com outras artes ou não interagindo com nenhuma, esse é mais um desconfortável fato da vida que precisamos aceitar.

Promover uma cruzada radical contra os não-leitores, tentar convertê-los a qualquer preço, é dogmatismo.

Encontro existencial
Não existe uma linha nítida separando as pessoas totalmente apaixonadas pela literatura das pessoas totalmente desapaixonadas. A passagem de um grupo ao outro é uma gradação muito sutil. Isso significa que a boa literatura sempre conquistará novos apaixonados. Eu tenho certeza de que muitos não-leitores incertos continuam não-leitores incertos porque ainda não encontraram o grande autor — o grande amor — de sua vida. No vasto oceano de livros e autores, nem sempre o livro mais adequado do autor certo encontra no momento mais adequado o leitor certo, que acaba desanimando de procurar, perdendo o profundo encontro existencial.

Na guerra pela atenção dos leitores convictos e dos não-leitores incertos, a literatura enfrenta dois adversários: a literatura ruim e as outras formas de arte, principalmente a música, os filmes, as séries, os quadrinhos e os games. A literatura ruim não precisa de maiores esclarecimentos: é justamente a que não promove um encontro existencial, uma poderosa experiência estética. Um romance ruim, uma coletânea de contos ou poemas ruim, além de não ser páreo para um bom filme ou um bom game, ajudam a consolidar a ideia de que toda a literatura é uma grande chatice, puro papo-furado.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho