Planeta Anzolin: uma órbita

A coletânea “Central de Despachos Nossa Senhora das Graças”, de Amarildo Anzolin, é um livro poderoso
Ilustração: Juliano Soares
01/05/2022

[Warning: algumas cenas contêm efeitos estroboscópicos que podem afetar-infectar espectadores fotossensíveis.]

Gravitando
(Por que é tão difícil andar a pé?)
Na mesma órbita de nosso planeta
Gravitando. E cantando. E seguindo a canção
Viaja nosso planeta-irmão, o planeta Anzolin
Liberando um rastro de graças e desgraças. Infinitas
Na mesma velocidade veloz. E no mesmo sentido sintático que nosso planeta terrestre
Mas tendo sempre a estrela-sol matematicamente posicionada entre ambos…
(Essa oposição sideral é bastante benéfica, acreditem)
Juro pra vocês: bilhões de anzolins habitam alegremente os muitos continentes do planeta Anzolin
Uma cantora magra com cabelo escorrido e vestido de veludo molhado sem cor definida
Cantora Anzolin
Umas putas quase invisíveis sob uma marquise revitalizada
Putas Anzolins
Um poeta saturado da própria poesia senta no chão, afaga um gato
Poeta Anzolin, patafísico. Um presente preso a passado e futuro
Gato Anzolin, peripatético. Uma agulha de vitrola em disco riscado
A arte não é dura, é tratamento
Diz o gato que já leu Ulysses
A vida não é bula, é alimento
Diz o gato que já leu Infinite jest
A memória é vidro fino: elixir do exílio
Diz o gato que já leu Ducks, Newburyport
Tudo se move. Sempre. Até demais
Enquanto isso o segredo da coca-cola ronca ao meu lado. Ronca doce, até onde pode ser doce o roncar
De uma cloaca
No planeta Anzolin
No hemisfério norte e no hemisfério sul
Juro pra vocês, em cada esquina há um Amarildo Anzolin cochichando no ouvido de outro Amarildo Anzolin
Não falha nunca
Um Amarildo Anzolin cochichando que Antônio Houaiss falou a Manoel de Barros que contou ao Douglas Diegues que disse ao Amarildo Anzolin, numa conversa, que o nome que se dá ao fenômeno da grande recorrência de certas palavras em quase todos os poetas, uma espécie de perseguição vocabular, é arquissema
Os dentes do sol rasgam o dia
Dentes de Anzolin. Sinestésicos. Humores mutilados. Vertigem vertical
Juro pra vocês: os dentes do sol rasgam o dia
Pessoas morrem
Prédios nascem
Dylan é preciso
Nobel não é preciso
O passado tá passando rápido demais
Diz o gato Anzolin que já leu Rayuela
(Por que é tão difícil andar a pé?)
Ele: o planeta Anzolin…
Gravitando e cantando e seguindo a canção
Bem que colocava o fardão
Pagava de Beatle
Ghost brand? Concreta macumba?
> Eu preferiria não fazer
É preciso viver?
> Eu preferiria não fazer
No planeta Anzolin
Nosso planeta-irmão. Sim!
É preciso viver
Achar um jeito de matar o tempo
Mas a morte cabe no bolso
>Por que nasci se não seria pra sempre?
Sonhei que estava morto
Desde criança tenho a impressão de que a morte e tudo que a cerca é em preto e branco, com matizes aqui e ali em cinza e roxo; as mínimas alças das urnas ou as grafias nas faixas condolentes me pareciam querer dourar a pílula da perda
> Toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são?
Sonhei que estava morto
Me convenci
Quando me vi ali no caixão
Nariz a postos rodeado de flores
>Não somos nada além de peças de carne conscientes que respiram e defecam e que podem morrer a qualquer momento
Juro pra vocês: nas asas da ayahuasca
Meus sentidos
Ora orbitam ora habitam
O planeta Anzolin, que grita-grita:
Como saber quando
não há mais o que fazer?
Como parar o mar
que não para?
Como apagar o sol
que não desce?
Como saber onde começa
se o caminho está no meio?
As pedras que não param
vão rolando para o abismo
Cinquenta para Bolaño
Mais de cem para Parra
Mais cinquenta para Violeta
Clarice morreu um dia antes de nascer
Mark morreu cantando na Itália
Mário e Leila explodiram no ar
Bashô: mil anos de haiku em meio século
A tanatossintonia de Antonioni e Bergman
A rima de Cazuza com Ezequiel Neves
Afinal quando o tempo para?
Quando saber como ainda se faz o que tem que fazer?
Desde quando você ouve
a voz do mar?
Como aprender o que a escola
ensina sem olhar o mar?
Como saber como fazer?
Se você está no meio do caminho?
As cinzas de Bolaño ensinam o Mediterrâneo
O corpo de Parra olha o mar desde o pátio

Um aviso de nosso comandante > Queridos passageiros, o desvario que os senhores acabaram de contemplar demonstra o que acontece quando, numa viagem de ayahuasca, o psiconauta examina, noite adentro, um livro tão poderoso quanto a coletânea Central de Despachos Nossa Senhora das Graças, de Amarildo Anzolin. No depoimento acima — uma espécie de plano de voo interdimensional com a brevíssima participação de Melville, Ionesco, Calderón e Sheldon Solomon — se misturam linhas do metaviajante psicodélico e versos do protopoeta igualmente psicodélico. Os leitores mais escolados certamente souberam distinguir uma autoria da outra.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho