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Neste início de século vinte e um, movimentos artísticos e literários saíram de moda
Ilustração: Taise Dourado
01/07/2021

Neste início de século vinte e um, movimentos artísticos & literários saíram de moda? Artistas, músicos, cineastas & escritores não se reúnem mais para propor novas tendências? Novas rebeliões? Algazarras coletivamente orientadas?

Um século atrás, enquanto a Primeira Guerra Mundial incendiava a Europa, uma galera irada começou a se reunir no Cabaré Voltaire, em Zurique. > Risos, gritos, olhares, cheiros, sabores. > O propósito era um só: bagunçar o bom-gosto afetado e a vida xexelenta. A vida domesticada, dita civilizada.

Hugo Ball + Emmy Hennings + Tristan Tzara + Richard Huelsenbeck + outros baderneiros que foram se juntando ao grupo inicial devoraram o futurismo e vomitaram o dadaísmo, a guerrilha artística & literária mais importante do século vinte.

Cabaré Voltaire > usina de fissão psíquica.

Dadá > liberdade: de regras, valores & louvores comerciais.

Antiarte > a rejeição radical da arte favorecendo radicalmente a arte.

Impressionismo > fauvismo > cubismo > futurismo > expressionismo > dadaísmo > modernismo brasuca > surrealismo > construtivismo > antropofagia > expressionismo abstrato > concretismo > op art > pop art > tropicalismo > realismo mágico > enfim, todos os grandes movimentos artísticos & literários foram ações planejadas em reuniões regulares, olho no olho, dente por dente, nos muitos Cabarés Voltaires deste planetinha fascinante. Ações planejadas em Zurique > Paris > Londres > Nova York > São Paulo…

O que eu desejo frisar nesses exercícios coletivos de musculação arte-antiarte, nessas lutas coletivas contra a banalidade dos costumes e da opinião pública, nessas críticas coletivas à infalibilidade da razão pragmática, nesses irreverentes ciclones coletivos que agitaram a atmosfera do século vinte, é justamente o aspecto coletivo dessas ações.

O zeitgeist ocidental gestava e partejava esses demoníacos ciclones coletivos o tempo todo. Contra o pensamento domesticado. Em turbilhão, manifestos + bebedeiras + revistas + troca de cartas + telefonemas + polêmicas nas páginas dos jornais giravam em vários idiomas.

Então tudo cessou. A usina de insatisfação foi silenciada e os ciclones se dissolveram. Os últimos selvagens foram domesticados. Foram convertidos à religião dominante.

Uma força invisível no atual zeitgeist ocidental impede a fecundação de novos violentos movimentos centrípetos. Uma força conformista.

Não há mais Cabarés Voltaires.

Neste início de século vinte e um, movimentos artísticos & literários saíram de moda. Artistas, músicos, cineastas & escritores não se reúnem mais para propor novas tendências.

Novas rebeliões. Algazarras coletivamente orientadas.

Novas desintegrações.

Integrar-se à manada é a única tendência total atual? Fazer bonito nas pesquisas de satisfação é o sonho de consumo de cem por cento dos criativos solitários?

Está lançado o bunda-molismo individualista?

De maneira alguma. Ao menos no campo literário, se os escritores brasucas não se reúnem mais para propor novas tendências coletivas, vocês & eu ainda podemos ir atrás das novas tendências coletivas — coletivas, porém virtuais & individuais — disseminadas na ação solitária de vários escritores brasucas afastados no tempo e no espaço. Isso se chama reconhecimento de padrões.

No vasto nevoeiro da literatura brasileira recente, com dezenas de centenas de títulos sendo lançados todos os anos, um romance se destaca. Uma estrela que brilha & gira de modo excêntrico: o romance Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett, lançado em 1991.

Narrativa não-realista + linguagem caudalosa-barroca + profusão de neologismos + personagens não-domesticados + enredo aloprado-escatológico-labiríntico-irreverente sci-fi + tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de Santa Clara Poltergeist o centro de uma constelação revolucionária. O ponto de partida de uma nova tendência coletiva não-gregária, silenciosa, disseminada na ação individual & individualista de vários escritores brasucas que jamais tomaram um porre juntos, que jamais conspiraram — olho no olho, dente por dente — num Cabaré Voltaire tropical.

À direita e abaixo de Santa Clara Poltergeist está outra estrela que brilha & gira de modo excêntrico: a coletânea de ficções-ensaios Galáxias, de Haroldo de Campos, escritas entre os anos de 1963 e 1976, mas sendo integralmente publicadas apenas em 1984.

Narrativas não-realistas > linguagem caudalosa-barroca > profusão de idiomas & neologismos > fluxo selvagem de uma consciência não-domesticada > ausência de parágrafos, pontuação & maiúsculas > enredo aloprado-labiríntico > tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de Galáxias uma estrela-irmã na mesma constelação de Santa Clara Poltergeist. Estrelas irmanadas no delírio do corpo (Fausto) e da mente (Haroldo) em convulsão.

Fausto & Haroldo não conversavam. Jamais tomaram um porre juntos, jamais conspiraram — olho no olho, dente por dente — num Cabaré Voltaire tropical.

À esquerda e abaixo de Santa Clara Poltergeist está outra estrela que brilha & gira de modo excêntrico: o romance Catatau, de Paulo Leminski, lançado em 1975.

Narrativa não-realista > linguagem caudalosa-barroca > profusão de trocadilhos & neologismos > fluxo selvagem de uma consciência não-domesticada > ausência de parágrafos > tempo-espaço caleidoscópico > são essas características reunidas que fazem de Catatau outra estrela-irmã na mesma constelação de Santa Clara Poltergeist. Estrelas irmanadas no delírio do corpo (Fausto) e da mente (Leminski) em convulsão.

Fausto & Leminski não conversavam. Jamais tomaram um porre juntos, jamais conspiraram — olho no olho, dente por dente — num Cabaré Voltaire tropical. Mas Leminski & Haroldo chegaram a trocar umas palavrinhas mais ou menos protocolares.

Acima de Santa Clara Poltergeist está outra estrela que brilha & gira de modo excêntrico: o romance Macunaíma, de Mario de Andrade, lançado em 1928.

Narrativa não-realista > personagens não-domesticados > enredo aloprado-labiríntico-irreverente > diálogo paródico com a cultura popular e o folclore brasileiro > tempo-espaço fantástico > primeiro exemplo do realismo mágico latino-americano > são essas características reunidas que fazem de Macunaíma uma estrela-irmã na mesma constelação de Santa Clara Poltergeist. Estrelas irmanadas no delírio do corpo em convulsão (Fausto & Mário).

Fausto & Mário obviamente não conversavam. Obviamente jamais tomaram um porre juntos, jamais conspiraram — olho no olho, dente por dente — num Cabaré Voltaire tropical.

Para o olhar simétrico, Galáxias & Catatau & Macunaíma definem os vértices-vórtices de um triângulo equilátero tendo no centro Santa Clara Poltergeist.

Mas nossa constelação de estrelas solitárias não precisa ser exclusivamente simétrica. Ela não precisa ter sempre um centro. Para o olhar assimétrico essa constelação-solitude terá vários centros.

Mais estrelas fazem parte de seu desenho invisível.

À direita e acima de Santa Clara Poltergeist está Festa na usina nuclear, coletânea de contos de Rafael Sperling, de 2011.

Narrativas não-realistas > linguagem ora caudalosa-barroca ora econômica fragmentária > uso recorrente da anáfora e do nonsense > personagens não-domesticados > enredos aloprados-escatológicos-labirínticos-irreverentes > tempo-espaço fantástico > são essas características reunidas que fazem de Festa na usina nuclear uma estrela-irmã nessa mesma constelação excêntrica-subversiva.

(continua na próxima edição)

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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