Paródia, pastiche, plágio etc. (final)

“O plágio é necessário, o progresso exige”, escreveu Lautreamont, no século 19. “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”, repercutiu Picasso, tempos depois.
07/07/2015

“O plágio é necessário, o progresso exige”, escreveu Lautreamont, no século 19. “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”, repercutiu Picasso, tempos depois.

Para um grande número de poetas e artistas radicais (militantes do playgiarism, movimento Neoista, grupo Wu Ming etc.), hoje o plágio é também uma forma de arte. Estando ou não de acordo com essa militância subversiva, é importante reconhecer que existem ao menos dois tipos de plágio.

No primeiro, há a intenção de enganar: o plagiário deseja tomar o lugar do verdadeiro autor. Pra ele é fundamental que o verdadeiro autor desapareça, pra que possa assumir seu lugar. No segundo caso, também chamado de paródia, pastiche etc., é forçoso que o verdadeiro autor seja reconhecido, do contrário o leitor não perceberá o jogo intertextual. Obviamente, esse procedimento criativo exige um leitor competente, capaz de reconhecer a apropriação-citação-colagem mesmo sem qualquer indicação bibliográfica fornecida pelo plagiário-parodista-pasticheiro. A poética do anacronismo exige um leitor sofisticado, treinado na arte sutil da ironia.

Certos autores (João Silvério Trevisan e Alasdair Gray) explicitam as regras do jogo no final da própria obra, enquanto outros (Uilcon Pereira e Ana Miranda) mantêm ocultas as regras, pois faz parte do jogo que o leitor-investigador descubra tudo, incluindo as regras e a intenção irônica. Essa proposta exige um leitor mais participativo, mais comprometido com a cultura literária.

Em Uma teoria da paródia, Linda Hutcheon argumenta:

A paródia pode ser vista como uma força anárquica, que põe em questão a legitimidade de outros textos. Ao destronar reconhecidas normas literárias, a paródia — a apropriação e o plágio também — questiona o estatuto da arte como propriedade individualizada.

Quando falamos de paródia não nos referimos apenas a dois textos que se interrelacionam de certa maneira. Consideramos também uma intenção de parodiar outra obra (ou um conjunto de convenções) e o reconhecimento dessa intenção, ou seja, a capacidade de localizar e interpretar o texto de fundo em sua relação com a paródia.

Como qualquer código, o código paródico tem de ser compartilhado para que a paródia seja afinal compreendida como paródia. Quer ela se pretenda subversora do cânone estabelecido quer força conservadora, quer vise homenagear ou ridicularizar o texto original, em qualquer dos casos o leitor tem de decodificar como paródia para que a intenção do autor seja plenamente realizada.

Se o leitor não consegue reconhecer uma paródia como paródia (já por si uma convenção literária canônica) e como uma paródia de certa obra ou de um conjunto de normas (no todo ou em parte), então falta a ele competência. Por essa razão, a paródia é um gênero que parece florescer essencialmente em sociedades democráticas culturalmente sofisticadas.

Na arte e na literatura, a colagem, a reciclagem e a incorporação de material alheio, citando ou não a fonte, são procedimentos fundamentais e legítimos da poética do anacronismo (paródia, pastiche, plágio etc.). Um sem-número de escritores fez e faz uso dessas estratégias compositivas: Shakespeare, Büchner, Proust, Joyce, Eliot, Pound, Brecht, William Burroughs, Italo Calvino, Tom Stoppard, Valêncio Xavier, Michel Houellebecq, Yann Martel, Helene Hegemann…

Mas se engana quem acredita que essa legitimidade poética é soberana na sociedade contemporânea. Sobre esse assunto, soberano é o código penal. A lei repudia e combate vigorosamente a poética do anacronismo. Apropriar-se da obra de outra pessoa, seja de que modo for, é crime e a pena é severa.

Cuidado, inocente autor. A maconha ainda hoje é um caso de polícia, então posso afirmar que a maconha da criação artística e literária é o plágio. Mas se o amplo debate sobre a maconha já ganhou até um documentário, Quebrando o tabu, capitaneado por Fernando Henrique Cardoso, o plágio criativo ainda é uma zona subterrânea de militância e resistência.

Para os operadores do direito, essa conversa de que “o plágio é uma forma de arte” não cola. O direito autoral não aprecia nem um pouco esse papo sutil sobre intertextualidade. E para os olhos e ouvidos da lei não existem matizes: colagem, reciclagem, remix, incorporação, duplicação ou cópia, tudo é plágio.

A dúvida é: a arte e a literatura podem ser domesticadas pelo capital? Devem respeitar normas impostas de fora, regras comerciais que ignoram as regras estéticas? Pra evitar processos judiciais, os parodistas-pasticheiros-plagiários mais cuidadosos são obrigados a trabalhar apenas com os textos que já caíram em domínio público. Trabalhar com material contemporâneo, nem pensar.

Mas os parodistas-pasticheiros-plagiários mais atrevidos se recusam a abaixar a cabeça diante da lei. Não aceitam qualquer limite para a criação. A declaração abaixo, encontrada acidentalmente na web, sintetiza essa posição ideológica:

Não devemos esquecer que o plágio é um exercício altamente criativo, que cada ato de plágio traz um novo sentido ao trabalho plagiado. Infelizmente, isso não muda o fato de que as forças capitalistas que controlam a cultura ocidental condenaram à ilegalidade o plágio dos textos modernos. Porém, não permita que isso o impeça de plagiar trabalhos modernos. Algumas precauções sensatas irão protegê-lo da perseguição. A maneira básica de evitar a violação de copyright é tomar a ideia e o espírito de um texto sem realmente copiá-lo palavra por palavra. Um dos melhores exemplos disso é 1984, de Orwell, que é a reelaboração direta de Nós, de Zamiatin. Qualquer pessoa com interesse sério no neo-plagiarismo deveria passar algum tempo considerando esses dois textos.
Grandes Ovos Negros (http://dedos.info/gon)

A história da arte e da literatura dos últimos duzentos e tantos anos é, em grande parte, a história das grandes transgressões. A princípio, contra a moral e os bons costumes. Muita gente que hoje endeusamos já sentou no banco dos réus. Sade, Goya, Almeida Garrett, Flaubert, Joyce, Grosz, D. H. Lawrence, Allen Ginsberg e Maria Teresa Horta não foram os únicos processados. Inúmeros artistas e escritores foram levados ao grande tribunal do puritanismo, acusados de obscenidade e indecência.

A lei trata o plágio, hoje, como tratava o homossexualismo tempos atrás: perseguindo, humilhando e punindo judicialmente os parodistas-pasticheiros-plagiários. Não podemos esquecer que a legislação que proibia as relações homossexuais era chamada de alvará do chantagista. Oscar Wilde foi vítima de diversas tentativas de chantagem, por garotos de programa, antes de ser condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados.

Isso conterá os delinquentes da criação artística e literária? Duvido muito. Uma pequena parcela das criaturas criativas só encontra sentido na transgressão. Não aceita ser domesticada. Onde existir uma fronteira com uma placa de não atravessar, ela entenderá como um convite para a desobediência.

No âmbito da pesquisa acadêmica, por exemplo, os parodistas-pasticheiros-plagiários são caçados sem piedade. Nossas faculdades de artes e letras ainda não perceberam que sua função não é incentivar apenas a investigação científica. É também estimular a investigação poética e estética.

Aborrecido com a baixa qualidade das dissertações e teses produzidas pela pós-graduação de certa universidade estadual, um amigo devaneou: “Minha vontade é produzir um pastiche de pesquisa acadêmica, uma colagem de textos alheios, inventando fontes e citações, pra defender uma premissa absolutamente nonsense.”

“Faça isso e você será fuzilado em praça pública”, eu disse.

“Não seria maravilhoso?!”

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho