No âmbito da criação artística e literária, adoro colagens, citações, imitações, reciclagens, remix, incorporações, duplicações, samplers, apropriações e cópias. Adoro sátiras e farsas. Adoro paródias, pastiches e, é claro, plágios.
Em 1992, o escritor João Silvério Trevisan foi denunciado e julgado como plagiário. A denúncia partiu de alguém muito próximo do autor, um rapaz chamado Alberto Orozimbo, que alertou: “O romancezinho que vocês acabaram de ler não passa de um grosseiro pastiche construído com toda a espécie de plágio e adulteração de outras obras”.
O romance em questão é O livro do avesso, publicado nesse mesmo ano, pela paulistana Ars Poetica. Dividido em duas partes espelhadas, seu protagonista é o próprio Alberto Orozimbo, um publicitário-poeta insatisfeito e azarado, que na primeira parte acaba se envolvendo com marginais, policiais corruptos, loucos, vagabundos e terroristas.
Na segunda parte — O avesso do livro —, durante uma assembleia tensa fica provado que Trevisan, o Grande Plagiador, construiu sua saborosa narrativa policial com cenas, situações e reflexões tiradas de Chesterton, Hitchcock, Borges, Mario Faustino, Fritz Lang e muitos outros escritores, dramaturgos e cineastas. Por que razão ele fez isso?
A justificativa está na orelha do livro: “Num mundo em esgotamento, onde se vive a permanente sensação de que tudo ficou velho, a reciclagem não é mera solução resignada deste final de século. Reciclar, na verdade, tornou-se um estilo. No âmbito da criação artística e da poesia, reciclar apresenta-se como um verdadeiro modo de ser”.
Essa é a justificativa geral do modernismo e do pós-modernismo para as paródias, os pastiches e os plágios realizados nos últimos cem anos na literatura e nas artes.
Uma década antes de O livro do avesso, a intertextualidade também movimentou boa parte de Lanark, o fabuloso romance do escocês Alasdair Gray. No final dessa obra-prima publicada em 1981, ocorre um divertido debate entre o protagonista indignado e um autor resignado. Detalhe: totalmente apartado de Alasdair Gray, esse autor é apenas mais um personagem da narrativa, uma interface entre o autor empírico e o livro que está sendo escrito. A certa altura ele explica ao protagonista:
Sua sobrevivência como personagem e a minha como autor dependem de atrairmos uma alma viva para dentro do nosso mundo impresso e prendê-la aqui por tempo suficiente para roubar a energia imaginativa que nos dá vida. Para enfeitiçar esse estranho, ando fazendo coisas abomináveis. Estou prostituindo minhas lembranças mais sagradas, transformando-as em palavras e frases as mais comuns possíveis. Quando preciso de frases ou ideias de mais impacto, roubo-as de outros escritores, geralmente distorcendo-as para mesclá-las às minhas próprias.
Em seguida é apresentado ao leitor um esclarecedor Índice de plágios, indicando a origem da maioria das cenas, situações e reflexões copiadas de outras obras. Um importante aviso precede esse índice:
Três são os tipos de roubo literário neste livro: plágio em bloco, em que o trabalho de outra pessoa é impresso como unidade tipográfica distinta; plágio embutido, em que palavras roubadas são ocultas no corpo da narrativa; e plágio difuso, em que cenários, personagens ou ideias são roubados sem as palavras originais que os descreviam. Para economizar espaço, esses serão doravante referidos como Blopag, Emplag e Diplag.
Visito minhas estantes em busca de outros exemplos de obras-colagens e encontro um magnífico artefato antropófago: a trilogia No coração dos boatos, de Uilcon Pereira, publicada no início dos anos 80. Movida pelo mais refinado nonsense, essa satírica máquina-de-plagiar interroga autores e autoridades, reciclando séculos de tradição literária.
Mais adiante, esbarro nos livros explosivos do terrorista Glauco Mattoso (“o plágio é mais honesto que o original, ladrão que rouba ladrão tem perdão perpétuo”, Artefacto). Ao seu lado, respeitando mais a ordem afetiva do que a ordem alfabética, encontro os livros não menos explosivos do não menos terrorista Sebastião Nunes e, em seguida, duas coletâneas do poeta-performer português Alberto Pimenta. Na poesia recente de língua portuguesa, esses são os três apocalípticos cavaleiros da estética da provocaçam, canibais oswaldianos que não hesitaram em expropriar da falida autoridade intelectual uns bons nacos de carne.
Em outra prateleira encontro o best-seller Boca do Inferno, de Ana Miranda, lançado em 1989. Esse romance historiográfico incorpora parágrafos do padre Antônio Vieira e poemas de Gregório de Matos, sem avisar o leitor. No acalorado debate veiculado pela imprensa, reunindo jornalistas e críticos literários, foram muito repetidas as palavras colagem, apropriação, citação, intertexto, pastiche e plágio (esta com bastante cautela).
Quanto ao melhor nome pra essa transgressão, dá pra notar que o consenso ainda está longe. O fato indiscutível é que a livre manipulação de textos alheios, sem a autorização dos autores ou a indicação da verdadeira paternidade, é um procedimento comum na arte e na literatura. Basta digitar em seu buscador preferido as frases “plágio na literatura brasileira” e “plágio na literatura mundial”, por exemplo, que surgirão dezenas de outras obras, além das citadas acima.
Como a teoria literária tem lidado com essa questão? Da maneira mais generosa possível: legitimando a transgressão e as obras.
Mas o problema da terminologia persiste. Nos manuais, dicionários e enciclopédias, a separação entre paródia, pastiche e plágio é sempre imprecisa e às vezes contraditória.
Bastante sucinta, a definição de plágio do dicionário Houaiss — “apresentação feita por alguém, como de sua própria autoria, de obra intelectual produzida por outra pessoa” — não difere significativamente da definição de outros dicionários e enciclopédias, e do senso comum. A dificuldade é que essa definição só contempla as situações mais nítidas: quando alguém simplesmente cola seu nome em cima do nome do autor de um romance ou conto, por exemplo, e publica o texto como se fosse seu.
Não é o que acontece nas obras citadas há pouco. João Silvério Trevisan e Alasdair Gray indicam, no corpo dos respectivos romances, a autoria das cenas, situações e reflexões tiradas de outras obras. Uilcon Pereira e Ana Miranda, ao contrário, optam por não explicitar o jogo intertextual. Isso caracterizaria o plágio? A maior parte da teoria literária garante que não, preferindo classificar como paródia, pastiche etc., de acordo com a intenção do autor, analisada individualmente.
Linda Hutcheon, estudiosa do pós-modernismo, tenta pôr ordem na casa, em seu conhecido Uma teoria da paródia. O assunto desse ensaio é obviamente a paródia, mas isso envolve refletir também sobre as estratégias discursivas vizinhas. A pesquisadora canadense define seu objeto de estudo como “uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica”, ou seja, “paródia é uma repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança”.
É fato bastante conhecido que vivemos há décadas uma crise da noção de autoria, crise que expõe a ficção romântica do sujeito como fonte coerente e constante de significação.
Quando um parodista incorpora frases originais de outro autor, misturando-as com frases de sua própria autoria, ocorre uma nova contextualização, mesmo se não houver qualquer indicação de paternidade. Essa é a lei fundamental da poética do anacronismo: qualquer texto fora do contexto é outro texto. Aliás, é bom lembrar que essa lei coloca em xeque principalmente a noção de roubo, veiculada pela tradicional definição de plágio. Borges refletiu sobre essa questão no conto Pierre Menard, autor do Quixote.
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