Tenho me exercitado bastante. Um pouco de atletismo, um pouco de natação. Fôlego e massa muscular. Na academia, não fujo da bicicleta nem dos halteres. Tenho me exercitado bastante. Mas somente na academia mental. Na academia da literatura. Fôlego e massa cerebral. Porque existe uma praça, no centro de Pyndorama, cercada por um jardim exótico e um pouco perigoso, muito bem cuidado, um belíssimo jardim que faria inveja aos da antiga Babilônia… No centro dessa praça mítica, localizada num ponto sobrenatural da savana brasileira, há um elegante monumento. Um monólito negro, imponente, muito parecido com o daquele famoso filme de ficção futurista. Esse monumento majestoso é uma espécie de placar, em sua superfície feita de nanotubos de carbono está inscrita a mais refinada excelência literária brasuca. Não adiantam rituais & invocações, as divindades que criaram e mantêm esse excêntrico placar raramente aparecem em público. Mas não resta dúvida de que são criaturas argutas. Elas enxergam a literatura-arte como um esporte. Um jogo intelectual. A melhor analogia é o salto em altura. No monólito negro está inscrito o nome de seis autores vivos. Justamente o nome dos seis autores brasileiros que saltaram mais alto neste início do século vinte e um. {Os Magníficos Seis.} {Fausto Fawcett + Luci Collin + Rafael Sperling + Ricardo Celestino + Aline Bei + Gustavo Piqueira} Meus amigos e eu, atletas da primeira e da segunda divisão, gostamos de pensar que a função dessa pedra quase alienígena é nos provocar. Mexer com nosso brio. O zumbido perpétuo do monólito está nos dizendo: CONSEGUEM ALCANÇAR ESSA ALTURA? Eu acredito que sim. Estou me esforçando pra conseguir. Puxo ferro na academia, corro no parque, dou meus pulos, tudo ao som de Gonna fly now, daquele famoso filme do boxeador. Há dez anos estou me esforçando pra atingir essa altura. Mesmo que eu jamais consiga, jogar o jogo já está sendo muitíssimo prazeroso. As constantes tentativas em prosa & verso… A busca pela excelência estética… Não existe satisfação maior. Uma festa íntima. Não existe esporte melhor. {Importante: não fiquem chateados por ainda não fazerem parte dos Seis Magníficos. Se isso estiver incomodando vocês, sigam meu exemplo: esforcem-se mais, vamos treinar juntos, nos divertir em grupo. Mas lembrem-se: não é apenas uma questão de escrever bem, como muitos pensam. É também uma questão de orientação. Conheço inúmeros autores superdedicados, que escrevem superbem, que escrevem muito melhor do que vocês & eu, mas estão mal orientados, seguindo na direção mais fácil, mais popular, em vez de escolherem uma direção mais rara e complexa. Precisam de uma bússola melhor. Na literatura-arte, talento significa: escrever bem + dedicação + orientação corajosa.} {A arte não é só talento, mas sobretudo coragem > Glauber Rocha.} {Também é importante não confundirmos as modalidades esportivas. As divindades vivem nos avisando: literatura-arte não compete com literatura-artesanato, esta não é uma experiência menor. São parâmetros & objetivos diferentes. Academias diferentes, igualmente legítimas. A literatura-artesanato também tem seus Magníficos Seis, seu próprio monólito, em algum lugar.}
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Os paralelepípedos da virtude estão sempre à mão, mas quem entre nós está em plena condição moral de atirar o primeiro? “Eu envio meus livros pra meus amigos, eles fingem que leem. Meus amigos enviam seus livros pra mim, eu finjo que leio. E continuamos grandes amigos.” A sabedoria imortal {imoral?} de João Ubaldo Ribeiro… Essa estratégia envolvendo livros & amizades, o autor de Itaparica, Bahia, a revela numa entrevista para as famosas páginas amarelas da revista Veja, em meados dos anos noventa. Ou no final dos anos oitenta. Não tenho certeza. Na época, eu sorri da tirada iconoclasta, da confissão em cadeia nacional de um costume nada virtuoso. Hipócritas! Dissimulados! Mas hoje, mesmo mantendo uma rotina implacável de isolamento & leitura {ao menos metade dos livros que chegam às minhas mãos, às minhas retinas, é lida integralmente}, eu penso diferente. Amigos escritores fingirem que leem os livros dos amigos escritores ainda hoje é regra, não exceção. Sabedor disso, já não considero esse esporte {ou doping?} um grande problema. Livros são publicados aos milhares, aos milhões, mas amigos são raríssimos. Impossível ler todos os livros, até porque a grande maioria jamais merecerá uma leitura plena, comprometida. Além disso “livros são pra serem escritos, não pra serem lidos” {Quentin Crisp}. Hoje eu penso que João Ubaldo Ribeiro está defendendo a amizade e a vaidade dos bons amigos contra a estúpida falácia de que os livros e a honestidade crítica são mais importantes. Excetuando os críticos profissionais incorruptíveis {será que ainda existe algum?}, tenho certeza de que você & todos os outros leitores deste planetinha também cometem frequentemente o pecadilho de fingir que leem & amam o livro dos amigos. Estratégia inaceitável? Os paralelepípedos da virtude estão sempre à mão, mas quem entre nós está em plena condição moral de atirar o primeiro? {É claro que eu podia ter conversado com Ubaldo sobre esse tópico, quando estivemos lado a lado, na Jornada Literária de Passo Fundo e na Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro. O problema é que, na presença do autor, a beleza estonteante de Sargento Getúlio & Viva o povo brasileiro me nocauteou, roubando minha capacidade de fala, meu oxigênio. Quando nos reencontrarmos, no Primeiro Congresso Interplanetário de Escritores, em Nova Piratyninga, capital de Marte, talvez eu consiga reunir a coragem necessária pra falar.}
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Em algum momento de abril de 2022. Fausto Fawcett está na cidade, aterrissou pra duas apresentações no teatro Cemitério de Automóveis. Marcamos um café na padaria Bella Paulista, onde a aurora boreal é mais intensa e as xícaras refletem melhor as galáxias próximas. Conheço há bastante tempo os discos e os livros ultra-subversivos do Fausto, mas não o conheço pessoalmente. Já trocamos e-mails e conversamos rapidamente por telefone. FF figura em quatro antologias minhas, três de ficções e uma de poemas sobre o pós-humano. Considero Fausto o mais relevante escritor brasuca em atividade. Sua radioatividade é única, erótica, ela promove a vida, não a morte. Para o encontro na Bella Paulista, convido também Ricardo Celestino, outro grande admirador das travessuras do tecnoxamã carioca. Sou fã da obra de ambos. Obra iconoclasta, transgressora. {Não lembro quem chegou primeiro, eu ou Ricardo. Atravessar portais bagunça a memória recente. Mas lembro bastante bem que meia dúzia de garçons feitos de luz líquida se reuniam a cada trinta minutos pra cantar em coro uns sucessos da Jovem Guarda.} Fausto chega em grande estilo: suave & volátil, invencível ataraxia, imbatível amor fati. Chega respirando sincretismo, impedindo tempestades & terremotos. Os garçons feitos de luz líquida cantam em coro, do rei Roberto Carlos, Quero que vá tudo pro inferno. {Entremeando solfejos & vocalises, lembro que conversamos, do final da tarde ao início da noite, a respeito de noventa e seis tópicos diferentes.}